Contra a parede

"Contra a parede", mais uma Crónica do Nada, no Correio do Porto. (online aqui)

A vida não aguarda a vida de ninguém. Talvez por isso saiba que, saídos contrafeitos do confinamento ou não, o monólogo invisível cacofonia-se e tem razão para isso. Todos os dias parecem ser o gaguejar do quotidiano numa tentativa de reiniciar um início que, pasmemo-nos, findou fadado que estava à nascença.

Sem gaiola que nos molde o crescimento, a existência segue, ainda que com algum lamento, o trâmite normal de orbitar os dias. Acolho-me, assim, desde as manhãs frias, na presença que levo sob a redoma onde repousam, esparramadas, as nuvens cinzentas, alvas e as que, pelo pôr-do-sol, alaranjam o crepúsculo onde chego, agora.

Arrasto os pés no cimento empurrando-me e escorregando-me pela amena superfície, a sorrir do que antevejo ser a queda por ter as mãos nos bolsos, mas não, ainda me assiste a capacidade de, tal como as sombras dos eucaliptos que ainda subsistem (ali acima, no som que vem a correr dizer-mo, moto-serras rugem enquanto mastigam o que resta dos pinheiros aqui à volta. Quem disse que as árvores morrem de pé?) ao redor, vir horizonte abaixo, até se encontrar com a dor.

Flicto as pernas, encosto o queixo aos joelhos, o capuz esconde-me do vento que anda por aqui a ventaniar-se a salvo do entardecer. Abraço as canelas e fecho os olhos. Os grilos esgrimem trinares à porta da toca, confiantes, alheios que estão agora os putos, também eles nas suas luras, ao findado, felizmente, tradicional enfiar de qualquer palhinha capaz de os tirar, aos grilos e aos miúdos, do buraco. Perdem-se maus hábitos e ganham-se outros costumes, talvez piores, cabeça enfiada entre os ombros sem que se apercebam eles, catraios, de sobranceiras cores.

Alguém passa por mim e sorri, há coisas que um homem não pode fazer sem criança voltar a ser, mas que quero eu saber? Nada, realmente, a não ser deixar-me embalar pela parede ainda quente, como um abraço dado pelo céu, logo a mim, que não o mereço, mas se para mim vem é meu e assim me esvaneço.

Quando as luzes cederam à escuridão, consegui vislumbrar, ainda, pelo que me resta de aluvião, que caso não me sobrasse vida ou não encontrasse eu a porta de saída, poderia suster-me à parede cujo inusitado cálido dia de Primavera tímida aqueceu.
Caramba, às vezes esqueço-me de ser eu. De tal modo o fiz. Feliz.


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