A simplicidade florida

“A simplicidade florida”, mais uma crónica do Nada publicada no Correio do Porto.
Para ler a edição online, clique aqui.

Aperto o pão nas mãos, faço um pouco de força e rasgo-o com o respeito que um ancião me merece. As migalhas caem petalamente, rodopiando, separando-se na criação divina e caindo-me, algumas, em cima. Esfrego as pontas dos dedos, solta-se um nevoeiro privado para o qual me faço convidado.
A caneca gasta de uma cerâmica cansada onde o tempo bicou já algumas lascas, acolhe os vórtices que se formam, o do café onde a espuma da sua maré vagueia como que colectando as migalhas e a farinha poeirenta, e o meu vórtice, o desconexo movimento sensorial que me permite redemoinhar em direcção a um escuro, negro, imenso rasurado destino, por onde mergulho e me vejo sair sair do lado de lá do moinho. Claro, sozinho.

Emociono-me com a simplicidade florida de quem nunca se viu viver a vida de espada erguida, saldando-se à consciência sem que Anúbis saiba, sequer, que Deus fez uma Alma sem se aperceber.
A tarde quente pouco acomete ao espírito inquieto, de facto, todo e qualquer pretexto é bom para descer, mergulhar, ensopar, embolar o pedaço de pão, ver o nível escuro descer na chávena, deixando no rebordo interior círculos acastanhados que o calor transforma em linhas de uma maré que me navega. Este esfumado líquido negro é por onde o espírito me sega. O pão impregnado torna-se mais pesado, iço-o com o cuidado necessário para que não se solte e molhe a alva toalha de linho, aqui ainda mora o bibe e o carinho, sacudo-o lentamente e levo-o à boca, comendo e sorvendo a cafezada, ou lá o que queiram chamar ao repasto tardio de uma madrugada que vesti fria, mas me é servida quente, ao longo dia a pique.

Repito o parágrafo da mesma forma que me deixo encostar à calidez de uma parede à sombra, onde o vento sopra e o alforge se alivia de mim. A outra metade do pão, recheado dele mesmo, repousa na linácea rodilha que mãos cuidadosas teceram e cujo respeito me mereceram. Miramo-nos. Eu pedaço, ele naco, quem me dera sermos polvilha do mesmo saco.

O destino quer-se servido frio, como a vingança, ou a chacina para onde nos leva a matança, a mesma que outros chamam vida, mas como no entardecer cabem as horas todas do meu esmaecer, permito que me fechem os olhos, o pão abocanhado e aos golfes a marear os meus sonhos, sem dobrar cabos ou prantos.

Sorvido, comido, o sorriso é uma árvore de folha perene na floresta onde adormecem os trinados, nas eiras e beiras da cabana aquecida pelo braseiro de um cafezeiro, onde caem as migalhas da alegria nossa de cada dia.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Pessach

Torrada ou Maria?

Até um dia destes