Invisibilidade
“Invisibilidade”, crónica do Nada, no Correio do Porto, para ler abaixo ou aqui.
A cacofonia desvairada do comentador e o arfar animalesco de quem ao balcão vocifera contra uma decisão do árbitro perturba-me, desvio a contemplação e esbarro na invisibilidade da montra, onde o vidro duplo duplamente protege da amálgama sonora, sem permitir que se imiscuam barulhos e ruídos, a qualquer hora, internos e externos ao café. Por vezes, nem consigo auscultar a minha fé. Sons/somos cada vez mais distantes.
Vejo-o subir o degrau de acesso ao café num cambalear, sem vislumbrar a porta de entrada. Dá um passo atrás e enceta um par doutros arrastando a mão suada na vitrina até cruzar o olhar comigo. Sacode os ombros, ergue as sobrancelhas, aponta para dentro e pergunta fitando-me, a mímica não se faz entender a quem não ouve, ou houve, ao qual respondo apontando a porta onde há segundos tinha estado. Empurra o fino e frio cilíndrico puxador de inox duas vezes, troando como quem bate à porta da vida e ela limita-se, como as pessoas, a não ouvirem porque só sabem espiar. Com o esgar de quem se envergonha de si mesmo e tenta não exibir uma certa ebriedade, de espírito ou licorosa, puxa a porta, sorri e entra no café. (Por instantes o som do camião parado à entrada da rotunda, os quatro piscas ligados, suscitando um coro de buzinas impacientes, surpreende a audiência que, absorta, mergulhava a vida no televisor e outros, como eu, aliás, só eu, sacudia a atenção para mais um dia somado na subtracção ao que nos falta ainda escutar.) Ao passar por mim, num envergonhado sorriso justificativo de não dar com a entrada diminui-se com um jocoso «estava na horta e não via as couves!». Sorrio insonoramente mais alto do que os sons que me rodeiam. Atrás dele vinha a solidão. Emociono-me.
A porta fecha-se sozinha, como que nos poupando ao esforço de não nos querermos sair, titubeia até ao balcão e pousa o saco de papel no metálico banco de napa vermelha. Tira duas moedas do bolso das calças de bombazina, pousa-as no frio granito rosa monção e sem necessitar de qualquer interlocução, o dono do café e empregado da vida enche-lhe uma caneca de cerveja à pressão. Assim que as moedas são recolhidas, por educação deduzo, sorve a caneca num trago de cinco golfadas, pousando de seguida o recipiente vazio com a espuma a admirar o tecto amarelado. Raspa a boca com a delicadeza possível que as costas das mãos proporcionam e sai, sem um boa tarde, boa noite até, por quem se tolhia ao jogo transmitido ou às conversas circunstanciais dos casais unidos à mesa e separados pelos telemóveis.
Não chegou a descer o patamar de entrada, descobriu mais duas moedas noutro bolso, trilhou um pé para que a porta não fechasse e reentrou, repetindo o procedimento perante o olhar inócuo de quem olha e não vê. Num só hausto adiantou a ebriez como quem se afoga na escolta invisível do que o espera do lado de lá da vidraça, da vida, onde o fragor não reverbera. Atirou-me um «boa noite» e retribuí com vergonha, complacentemente, acompanhando com a vista o percurso irregular de quem parece esgueirar-se aos pingos de chuva que ameaçam precipitarem-se sobre a tristeza.
Talvez seja preferível a companhia da solidão, à invisibilidade de quem não se sabe viver e está ainda verde, para que o infinito o possa colher.
A cacofonia desvairada do comentador e o arfar animalesco de quem ao balcão vocifera contra uma decisão do árbitro perturba-me, desvio a contemplação e esbarro na invisibilidade da montra, onde o vidro duplo duplamente protege da amálgama sonora, sem permitir que se imiscuam barulhos e ruídos, a qualquer hora, internos e externos ao café. Por vezes, nem consigo auscultar a minha fé. Sons/somos cada vez mais distantes.
Vejo-o subir o degrau de acesso ao café num cambalear, sem vislumbrar a porta de entrada. Dá um passo atrás e enceta um par doutros arrastando a mão suada na vitrina até cruzar o olhar comigo. Sacode os ombros, ergue as sobrancelhas, aponta para dentro e pergunta fitando-me, a mímica não se faz entender a quem não ouve, ou houve, ao qual respondo apontando a porta onde há segundos tinha estado. Empurra o fino e frio cilíndrico puxador de inox duas vezes, troando como quem bate à porta da vida e ela limita-se, como as pessoas, a não ouvirem porque só sabem espiar. Com o esgar de quem se envergonha de si mesmo e tenta não exibir uma certa ebriedade, de espírito ou licorosa, puxa a porta, sorri e entra no café. (Por instantes o som do camião parado à entrada da rotunda, os quatro piscas ligados, suscitando um coro de buzinas impacientes, surpreende a audiência que, absorta, mergulhava a vida no televisor e outros, como eu, aliás, só eu, sacudia a atenção para mais um dia somado na subtracção ao que nos falta ainda escutar.) Ao passar por mim, num envergonhado sorriso justificativo de não dar com a entrada diminui-se com um jocoso «estava na horta e não via as couves!». Sorrio insonoramente mais alto do que os sons que me rodeiam. Atrás dele vinha a solidão. Emociono-me.
A porta fecha-se sozinha, como que nos poupando ao esforço de não nos querermos sair, titubeia até ao balcão e pousa o saco de papel no metálico banco de napa vermelha. Tira duas moedas do bolso das calças de bombazina, pousa-as no frio granito rosa monção e sem necessitar de qualquer interlocução, o dono do café e empregado da vida enche-lhe uma caneca de cerveja à pressão. Assim que as moedas são recolhidas, por educação deduzo, sorve a caneca num trago de cinco golfadas, pousando de seguida o recipiente vazio com a espuma a admirar o tecto amarelado. Raspa a boca com a delicadeza possível que as costas das mãos proporcionam e sai, sem um boa tarde, boa noite até, por quem se tolhia ao jogo transmitido ou às conversas circunstanciais dos casais unidos à mesa e separados pelos telemóveis.
Não chegou a descer o patamar de entrada, descobriu mais duas moedas noutro bolso, trilhou um pé para que a porta não fechasse e reentrou, repetindo o procedimento perante o olhar inócuo de quem olha e não vê. Num só hausto adiantou a ebriez como quem se afoga na escolta invisível do que o espera do lado de lá da vidraça, da vida, onde o fragor não reverbera. Atirou-me um «boa noite» e retribuí com vergonha, complacentemente, acompanhando com a vista o percurso irregular de quem parece esgueirar-se aos pingos de chuva que ameaçam precipitarem-se sobre a tristeza.
Talvez seja preferível a companhia da solidão, à invisibilidade de quem não se sabe viver e está ainda verde, para que o infinito o possa colher.
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