Sagrada Família
“Sagrada Família”, uma Crónica do Nada, no Correio do Porto.
Alheia à periculosidade de caminhar numa estrada nacional de costas para o trânsito, talvez porque o negro das vestes que lhe escorrem do corpo até aos pés não avizinhe nada que se possa perder além do que já foi perdido, como a alma gêmea que se faz já de sentimento erodido, segue lesta pela faixa de asfalto desgastado, no limite entre o traço contínuo, tracejado aqui e ali como locais onde por analogia se possa mudar de destino, e a berma que resvala para um empedrado, musgado, esburacado caminho por onde a água corre apenas por não ter escolha.
Na mão direita, suspensa como uma pequena lamparina a óleo alumiando as noites e os dias desprovidos de luz, dentro e fora de nós próprios, uma pequena casinha de madeira, como todas devem ser, as casas, pequenas e de madeira, onde vivam entre nós e veios mais ou menos encostados aos corpos que nos permitem colmatar a solidão de sermos por vezes ermos, transporta gentilmente uma família, sagrada.
Dentro do cubículo, às escuras pelas portadas fechadas, carinhosamente presas com uma chave minúscula onde uma meia volta chega para que não vá o Pequeno dar de olhos com o estado em que o mundo está, seguem, com um ou outro solavanco, as imagens assentes no soalho. Parecem adormecer no ritmo da caminhada, talvez descansando da última estada ou embevecidas da pobre esmola ofertada, como é oração de pobre que do bolso tira nada e talvez por isso chegue mais depressa ao céu.
Ajeita o lenço negro que, na cabeça, acalenta as cãs, puxando-o para o queixo, não sei se pelo frio que os carros em velocidade acelerada trazem no rasto, se pelo pudor de se ter corpo há muito não afagado, além do borralho e da noite consoada com o Porto e o pão de ló. Continua a caminhada, a sagrada família como companhia, talvez até como único motivo de ver nascer o dia, os carros tangem-lhe os passos, mas nada abala o pé de quem se deixa carregar aos ombros da fé.
Não há destinatários, nem lares, que acolham tal presença, o mundo já não é de quem em Deus acredita, vale tudo sobre a palavra dita. Por isso, após ronda sobre as casas usuais, chegada a casa, o portão de madeira apodrecida na beira do caminho permanentemente aberto, e é assim que está certo, corre para dentro. Os cavacos secos rapidamente abandonam o estio e estalam escancarando as entranhas secas, ajudados pelas pinhas, abrindo caminho ao fogo que começara a aquecer a cozinha. Assegurado o ar um pouco mais quente, a portinhola aberta com todo o cuidado para a claridade não ferir os olhos dos modestos habitantes, a lamparina acesa em frente ao pequeno oratório, as mãos em concha na malga onde a boroa sorve boiando o negro ascenso café, recita-se a ladainha orada de olhos fechados para que não se distraia a devoção e assim se deixa o dia despedir em paz. Ou talvez seja a solidão a esconder-se na religião, tanto faz.
A noite encarrega-se de nos trazer o frio, os cavacos exaustos desenrubesceram e para que não se constipe o mundo, o menino Jesus, olhando em redor, deixa a mão do Pai e vai, pé ante pé, resguardado no olhar enternecido da Mãe, puxar o xaile que resvalara ao chão da cozinha para as pernas da velhota, que recita no hiato entre o sono adormecido e o profundo «Possamos depois bendizer-vos por toda a eternidade no Céu» e o petiz Jesus, já no portátil oratório remata num sorriso maroto e cândido «Ámen».
Alheia à periculosidade de caminhar numa estrada nacional de costas para o trânsito, talvez porque o negro das vestes que lhe escorrem do corpo até aos pés não avizinhe nada que se possa perder além do que já foi perdido, como a alma gêmea que se faz já de sentimento erodido, segue lesta pela faixa de asfalto desgastado, no limite entre o traço contínuo, tracejado aqui e ali como locais onde por analogia se possa mudar de destino, e a berma que resvala para um empedrado, musgado, esburacado caminho por onde a água corre apenas por não ter escolha.
Na mão direita, suspensa como uma pequena lamparina a óleo alumiando as noites e os dias desprovidos de luz, dentro e fora de nós próprios, uma pequena casinha de madeira, como todas devem ser, as casas, pequenas e de madeira, onde vivam entre nós e veios mais ou menos encostados aos corpos que nos permitem colmatar a solidão de sermos por vezes ermos, transporta gentilmente uma família, sagrada.
Dentro do cubículo, às escuras pelas portadas fechadas, carinhosamente presas com uma chave minúscula onde uma meia volta chega para que não vá o Pequeno dar de olhos com o estado em que o mundo está, seguem, com um ou outro solavanco, as imagens assentes no soalho. Parecem adormecer no ritmo da caminhada, talvez descansando da última estada ou embevecidas da pobre esmola ofertada, como é oração de pobre que do bolso tira nada e talvez por isso chegue mais depressa ao céu.
Ajeita o lenço negro que, na cabeça, acalenta as cãs, puxando-o para o queixo, não sei se pelo frio que os carros em velocidade acelerada trazem no rasto, se pelo pudor de se ter corpo há muito não afagado, além do borralho e da noite consoada com o Porto e o pão de ló. Continua a caminhada, a sagrada família como companhia, talvez até como único motivo de ver nascer o dia, os carros tangem-lhe os passos, mas nada abala o pé de quem se deixa carregar aos ombros da fé.
Não há destinatários, nem lares, que acolham tal presença, o mundo já não é de quem em Deus acredita, vale tudo sobre a palavra dita. Por isso, após ronda sobre as casas usuais, chegada a casa, o portão de madeira apodrecida na beira do caminho permanentemente aberto, e é assim que está certo, corre para dentro. Os cavacos secos rapidamente abandonam o estio e estalam escancarando as entranhas secas, ajudados pelas pinhas, abrindo caminho ao fogo que começara a aquecer a cozinha. Assegurado o ar um pouco mais quente, a portinhola aberta com todo o cuidado para a claridade não ferir os olhos dos modestos habitantes, a lamparina acesa em frente ao pequeno oratório, as mãos em concha na malga onde a boroa sorve boiando o negro ascenso café, recita-se a ladainha orada de olhos fechados para que não se distraia a devoção e assim se deixa o dia despedir em paz. Ou talvez seja a solidão a esconder-se na religião, tanto faz.
A noite encarrega-se de nos trazer o frio, os cavacos exaustos desenrubesceram e para que não se constipe o mundo, o menino Jesus, olhando em redor, deixa a mão do Pai e vai, pé ante pé, resguardado no olhar enternecido da Mãe, puxar o xaile que resvalara ao chão da cozinha para as pernas da velhota, que recita no hiato entre o sono adormecido e o profundo «Possamos depois bendizer-vos por toda a eternidade no Céu» e o petiz Jesus, já no portátil oratório remata num sorriso maroto e cândido «Ámen».
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