Não devia viver assim

Não devia viver assim”, crónica do nada, para ler no Correio do Porto ou aqui.

Sabermos o quão a madrugada nos molda para o dia é adiantarmo-nos ao nosso crepúsculo. Não o imaginei por iniciativa própria, mas por descortinar pelo fumo da chaminé de aço inox ou pela senhora que, agora, passa por mim com uma rodilha no alto da cabeça, o saco de plástico, que ganhou as vezes de uma seira de vime, das compras equilibrado, uma mão sustendo o pacote de bolachas e a outra mão, alavancado a vontade de comer, com bolachas Maria, num acto mariano de alimentar a alma numa manhã fria para o corpo.

As portas ainda não descerradas quando a braseira ou o fogão a lenha parecem já trabalhar, exibem a casa fechada ao tempo, onde os anos se amontoam no corpo regado a vinho tinto, maduro, e panelas de sopa, verde, que são sorvidos em igual quantidade, numa miscelânea apropriada às manhãs, onde os amontoados restos de poda, folhas varridas com o amor que se sabe ter ao Outono em que entramos, na estação e no apeadeiro pequeno e abandonado que somos, descansam derretendo-se derreados pelos primeiros oblíquos raios de Sol que entorpecem os olhos, ainda adormecidos, enquanto não chega a gasolina e os fósforos.

– Disseram-me que não devia viver assim. – foi o que ouvi quando já perto do meio-dia, a porta entreaberta por onde espreitavam a boroa acolchoada pelo saco de pano, o copo e a caneca de vinho, e o prato virado ao contrário para que a fuligem não se abastecesse na sopa e lhe enferrujasse as articulações.

– Mas é assim que eu gosto e prontos. – uma pequena pausa – Já não tenho idade para prestar contas a ninguém. – continuou num desabafo interior que verbalizou sem querer, admirado, olhando para o copo vazio e caneca cheia quando, regra geral, o que lhe dava coragem era copo e caneca ambos vazios.

Quando chegamos à idade de sabermos não ter idade, seja para prestar contas, seja para não nos deixarmos subtrair pelos cálculos doutrem, sabemos que o mantido perto do peito tem o condão de nos avivar por dentro o calor que esquecemos, distante, em braseiro quase apagado. Talvez por isso, escondido entre parágrafos, com as portadas abertas agora, eu olhe para ele, sozinho, feliz, na azáfama de uma vida quase irreal, um paraíso que conhecemos apenas pelo resto de couve que levou a boroa ao forno. Resto-me reduzido à matemática da vida cuja equação, possível e determinada, é solucionada sem término ou adeus, porque a vida dele, e também a minha, é de Deus.


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