Dás-me um brinquedo?

Dás-me um brinquedo?”, crónica para a secção Crónicas do Nada, no Correio do Porto.

- Dás-me um brinquedo?

É impossível perceber onde terá ele visto o brinquedo e qual terá sido, as roulottes de bebidas e comidas sacudidas pelo ribombar das colunas que, ritmicamente, soltam decibéis de uma verbalização cacofónica muitas vezes ignóbil, orlam a avenida onde, longe agora da passividade das caminhadas diárias, se deslocam afobadas pessoas, infantis, adultas e indefinidas em busca do que é que quer que seja que lhes sacie a ansiedade que ladeia a ida à festa.

- Dás-me um brinquedo? – retorquiu.

Virei a cabeça, o puto cavalgava os ombros do pai, talvez antecipando uma ida ao carrossel infantil, trotear num cavalo tosco, rodar um volante a medo para a roda não sair do trilho, tocar na sineta do camião de bombeiros ou cintilar num unicórnio rumo ao arco-íris, destino final da fantasia pueril que, em adulto, não passará de um risco colorido no céu, longínquo, apesar das tentativas do infinito trazer à razão a ameninada escapada do mundo (de)crescido. Pedia um brinquedo qualquer. Seguindo-lhe o olhar percebi que mirava em desejo um carro que se destacava por entre uns caniches horríveis, de olhos iluminados como possuídos cachorros saídos de um pesadelo, que ciganos vendiam ao mesmo tempo que premiam com força o gatilho da pistola fazendo disparar bolinhas de sabão, estas sim bonitas reflectindo a iluminada noite barulhenta. O carro, a exemplo do restante, fazia mais barulho (o barulho não faz bem e o bem não faz barulho) do que propriamente exibia funcionalidades que o destacassem. De plástico com a reconhecida qualidade duvidosa, içava-se e transformava-se num robot, para depois agachar e voltar a ser carro. Encostada à caixa do carro, o resto de um cartão ostentava o preço, cinco euros, rabiscado em caligrafia que me fez duvidar se seria, de facto cinco euros ou, então, um “s” e um “e” num trocadilho entre o preço e o valor, 5 € ou SE?

- Dás-me um brinquedo? – com um pequeno puxão virou a cabeça do pai na direcção do carro, fazendo-o desequilibrar um pouco e cabecear um balão de um homem-aranha em pose pouco máscula e com o cordel amarrado ao local onde estaria a masculinidade do aranhiço, caso este a tivesse.

O pai já lhe tinha avizinhado a intenção, enquanto o braço esquerdo lhe segurava o equilíbrio com a mão no joelho do miúdo, a mão direita contara os trocados em três moedas de euro.

- Estes não, filho, não prestam. Queres antes um gelado de morando e chiclete? – propôs o pai olhando para o preçário da máquina azul-claro da sorveteria, equilibrando rapidamente o orçamento com aquilo que a necessidade poderia comprar, escondendo de si mesmo a vergonha de apenas ter nas mãos a ternura para o abraçar.

O pequenito, grande na compreensão e lesto na álgebra simples do amor, contrapropôs:

- Prefiro um só de chocolate e tu compras o de baunilha. É o que gostas, não é?

E eu, de borla, esqueci o preço e compreendi o valor numa noite contrafeita na ida à festa, ganhando a vida a fazer-me festas no coração.


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