Serafim
"Serafim", uma Crónica do Nada no Correio do Porto.
Foi com surpresa que numa das incursões pelo miasma social deslizei a cara do Serafim. Era uma fotografia simples, na expressividade artística e no sorriso aberto, puro e monocromático, colorindo o passado que, grande parte das vezes, se sobressalta na minha mente, transportando-me para os locais onde, policromaticamente, sonhava com um futuro matizado. Estava, afinal, errado. O Serafim morreu e nada acresce em mim, além da falta de rememorações que sustentem o seu sorrir. Esta vida é, por vezes, um dia no aguardado porvir.
Preciso voltar quase 30 anos, encostado à orla plástica da máquina de vídeo-jogos, a música da placa de som, arcaica agora, debitando os acordes desacordados de “1942” ou qualquer outro jogo, falha-me a memória, o barulho ao balcão, o tilintar dos talheres, um copo que se esvazia, o marulhar seco da espuma na cerveja à pressão a deslizar sem qualquer maré ou fé que naufrague a secura de um dia de calor. Era o Zangão, ainda é, diferente agora certamente, mais pequeno já depois de eu crescer, como tudo o que me acompanhou na infância e adolescência e, agora, no mundo adulto se metamorfoseou. Estava quente e naquelas tardes joviais, onde os minutos permaneciam inalterados durante largos períodos, o Serafim saía do parque de estacionamento. Em pé, entre dois carros, levantou a mão esquerda, a palma da mão virada para si como se um espelho invisível ali tivesse surgido, a mão direita, fechada, doseava um acelerador imaginário e ele, com os lábios tremendo pelo imitar do barulho da mota intercalados pelo pi-pi-pi da marcha-atrás. Consentaneamente, todas as pessoas do restaurante olharam pela vitrine, ninguém esboçou o menor riso ou o mais displicente olhar. Havia solenidade, compreensão, carinho e, aqui e ali, um olhar de amor e admiração. Era o que o Serafim era. Aglutinador de bondades.
O Serafim morreu e agora, com vergonha, não me vejo correr por aí como quem conduz um veículo motorizado ao ritmo de uma existência calma, infantil, conduzindo o destino numa mão enquanto a outra, se chover, mimetizará o limpa para-brisas e os salpicos de uma vida que não sabemos viver na plenitude.
O Serafim morreu e nada acresce em mim, pelo contrário, falta-me algo indistinguível à visão, ao sensorial desvairado que nos sustém deste lado da realidade.
O Serafim morreu e com ele foram centenas, talvez milhares de centelhas de simplicidade genuína, inocência gratuita, arrancadas a quem por ele não ficou indiferente, na felicidade empobrecida pela claridade de um sorriso, exaurida da sua fronte deixando a aba do chapéu vermelho molhada, transpirada.
O Serafim morreu, ascendeu em eterna criança levando consigo tudo o que de bom em nós florescia quando a inocência e o amor passavam por nós a conduzir um invisível camião dos bombeiros.
O Serafim renasceu, mas não o vemos, somos apenas o que em nós finda e, tristemente, estamos cegos ainda.
Foi com surpresa que numa das incursões pelo miasma social deslizei a cara do Serafim. Era uma fotografia simples, na expressividade artística e no sorriso aberto, puro e monocromático, colorindo o passado que, grande parte das vezes, se sobressalta na minha mente, transportando-me para os locais onde, policromaticamente, sonhava com um futuro matizado. Estava, afinal, errado. O Serafim morreu e nada acresce em mim, além da falta de rememorações que sustentem o seu sorrir. Esta vida é, por vezes, um dia no aguardado porvir.
Preciso voltar quase 30 anos, encostado à orla plástica da máquina de vídeo-jogos, a música da placa de som, arcaica agora, debitando os acordes desacordados de “1942” ou qualquer outro jogo, falha-me a memória, o barulho ao balcão, o tilintar dos talheres, um copo que se esvazia, o marulhar seco da espuma na cerveja à pressão a deslizar sem qualquer maré ou fé que naufrague a secura de um dia de calor. Era o Zangão, ainda é, diferente agora certamente, mais pequeno já depois de eu crescer, como tudo o que me acompanhou na infância e adolescência e, agora, no mundo adulto se metamorfoseou. Estava quente e naquelas tardes joviais, onde os minutos permaneciam inalterados durante largos períodos, o Serafim saía do parque de estacionamento. Em pé, entre dois carros, levantou a mão esquerda, a palma da mão virada para si como se um espelho invisível ali tivesse surgido, a mão direita, fechada, doseava um acelerador imaginário e ele, com os lábios tremendo pelo imitar do barulho da mota intercalados pelo pi-pi-pi da marcha-atrás. Consentaneamente, todas as pessoas do restaurante olharam pela vitrine, ninguém esboçou o menor riso ou o mais displicente olhar. Havia solenidade, compreensão, carinho e, aqui e ali, um olhar de amor e admiração. Era o que o Serafim era. Aglutinador de bondades.
O Serafim morreu e agora, com vergonha, não me vejo correr por aí como quem conduz um veículo motorizado ao ritmo de uma existência calma, infantil, conduzindo o destino numa mão enquanto a outra, se chover, mimetizará o limpa para-brisas e os salpicos de uma vida que não sabemos viver na plenitude.
O Serafim morreu e nada acresce em mim, pelo contrário, falta-me algo indistinguível à visão, ao sensorial desvairado que nos sustém deste lado da realidade.
O Serafim morreu e com ele foram centenas, talvez milhares de centelhas de simplicidade genuína, inocência gratuita, arrancadas a quem por ele não ficou indiferente, na felicidade empobrecida pela claridade de um sorriso, exaurida da sua fronte deixando a aba do chapéu vermelho molhada, transpirada.
O Serafim morreu, ascendeu em eterna criança levando consigo tudo o que de bom em nós florescia quando a inocência e o amor passavam por nós a conduzir um invisível camião dos bombeiros.
O Serafim renasceu, mas não o vemos, somos apenas o que em nós finda e, tristemente, estamos cegos ainda.
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