Recebe-o. é tudo o que tenho

“Recebe-o. é tudo o que tenho”, crónica na Bird Magazine, para ler aqui.

Obrigo-me a desligar o rádio, o silêncio súbito orvalha a noite e ascende à abóbada escura que encima o horizonte. Quanto mais o circense barulho me veste no dia, mais a noite se acomete ao meu regaço, passando-me a mão pelo ombro e convidando-me a erguer o meu zénite. A estrada e seus afluentes, os quais rapidamente perscruto enquanto conduzo, descoloriram-me a íris. Por entre um outro minuto, uma saca de dióspiros coroa a tarde na sua indumentária real e um desejo sincero de felizes festas traduz ainda o que sobra da natividade. O desenfreado galopar movendo pernas apressadas, aprisionadas, percorrem galerias que vendem tudo o que não preciso. Talvez por tudo não querer, tudo me saiba a ter o nada que tanta falta me faz, a inexistente alva veste, cujos padrões coloro com dedos finos, rechonchudos, gretados e infantis, que já não possuo. Aguardo as vésperas da véspera do Teu aniversário. Tal como criança, olhando o estrelado horizonte ascendido, quando te cantava os parabéns e sorria com o fumo singelo que via sair das chaminés que pareciam nublar a noite para te aquecer na manjedoura, onde quer que estivesses. (agora a sério, onde estás?) Como ficava surpreendido quando conseguias fazer passar pela estreita chaminé a lanterna que timidamente pedira aos meus pais e colocaras dentro da minha bota ortopédica. Sempre pensei que ma desses porque gostavas da simbiose: quando não chovia eu vinha cá fora, com a lanterna em punho, fazer-te sinais de luz (obrigado pela tua). Sorrio, agora, talvez como antes. A inocência alavanca o eixo que nos permite, com uma certa incolumidade, permanecer por aqui mais umas rondas ao astro. 
Com o rádio desligado, a porta do carro aberta, o orvalho a marear-me a cabeça capilarmente desprovida, as gotículas de saudade das memórias que me constroem encontraram pouso calmo. Volto a atenção para este mundo e vejo outra porta metálica semi-aberta, o cheiro a madeira lixada, o pousar de um grampo metálico no chão, a solenidade de um pai, qualquer um, mesmo sendo mãe, na missão de construir presentes que serão entregues em forma de escrivaninha, comprada no esforço prestacional de uma taxa de juro que, juro, vale por ser apalavrada com um rectangular pedaço de cartão e um firme aperto de mão. Talvez pelo frio, arrepia-se a mim a saudade do nada, quando sem faustas luzes, mas em cintilo superior, cá dentro e no exterior, galgava os degraus depois de fechada a porta da carrinha, sacudia as mãos de serrim nas calças, olhava feliz (sem que o soubesse) para o lado e seguíamos a entregar móveis, a receber sorrisos, sacas de tronchudas, um ou outro nabo, a pequena moeda desprovida de valor por me ser dada com amor, a garrafa de Velhotes e o despreparado travo, tudo cabendo num colorido cabaz de sortes. O sortido viria depois, o sobejo do aniversário, as pratas coloridas libertas da tarefa de envolver as raras baunilhas envolviam pinhas e enfeitavam o presépio sobre musgo erigido. Não me sobram pratas, ao contrário das memórias que me vestem, tento amortalhar tudo no tamanho de uma folha de papel, em forma de crónica de uma vida (quantas terei acumulado, já?), mas de crónica apenas a festividade, o acordar lesto no dia o desejo que nunca se apagasse a chama que em mim ardia, este bafejo de uma tarde vespertina, o advento que sopra a quem de si se desatina, uma pérola que nos ofusca sem brilho ou luz, um puto nascido sem nome ou outro, a quem chamam Jesus. 
Acordo-me no tempo, o rádio ainda desligado, a vida que se encosta a mim, de lado. A natividade encima-se de um vazio que preenche e sem nada nas mãos entrega-me tudo o que peço que recebas, é o meu amor, foi-mo também oferecido há tempos, pelo meu criador.

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