Sulcos

"Sulcos", crónica de Domingo na Bird Magazine, para ler neste link ou aqui.

Caminho nesta tarde cinzenta e húmida de Outono.
Há momentos em que ao invés de calcar as folhas dos plátanos, arrasto os pés e vou deixando dois sulcos, como lentos carris, atrás de mim. Existe em nós algo narcisista, de cunho histórico, a presença que gosta de percorrer caminhos e deixá-los assinalados, como quem afirma:
- Passei aqui.
Algo semelhante ao que encontramos em todos os parques e locais públicos, mais ou menos frequentados, as vulgares frases “Eu estive aqui” ou o usual “Amor para sempre, de Joaquim e Joana”. Os nomes são inventados, não por mim, mas por alguém, eu apenas escolhi dois aleatoriamente e juntei-os naquela pequena frase, cicatrizada tumefactamente na face de uma madeira que já se cresceu árvore.
Falava, ali acima, dos sulcos. Percorri uns metros e olhei para trás, o vento tinha levado já algumas folhas para tapar os sulcos, meus e de outros, há várias manias com os mesmos malucos. Senti empatia com o vento, teria pena, mas do vento que se liberta até da própria liberdade nada se tem além de empatia, simpatia e apatia quando eles nos silencia a fala entreposto entre dois olhares. Quando passou por mim novamente agarrei-o por um braço, levava a cabeça baixa e ofegava. Passei-lhe o braço pelo ombro e fui com ele, devagar, deitar e acamar as folhas que eu próprio tinha levantado.
O trabalho em equipa é mais lento, mas bem mais produtivo.
Acabei, parámos os dois ao mesmo tempo, a última folha foi colocada por nós ambos simultaneamente. Olhámos um para o outro e sorrimos, ele seguiu o caminho dele e eu, enquanto o via disparar em direcção ao horizonte, segui o meu caminho a pensar que é provável ser mais fácil, digo eu, pararmos um pouco, erguermos os pés e voltarmos atrás, cravando-os na terra e arrastando-os, escrevendo cicatrizes na vida, parar e voltar, ir e viver, nesta ou noutra vida, percorrer os mesmos sulcos, e lá, no início, onde calcámos a vida, ou alguém, talvez nós mesmos, mirar o local e dizer:
- Desculpa.
Facilitaríamos o trabalho ao vento.
E à vida.
Pensava nas folhas, nos sulcos, nos caminhos percorridos, nos que sulcam caminhos e só vêem os seus mesmos passos, onde passam tanto tempo contemplando o caminho que nem o sabem percorrer, os que pensam que caminhos não existem que não os que os seus próprios pés calcaram e que nos dizem:
- Não vás por aí.
O súbito esmaecer da luz diz-me que devo acordar, o carro da frente já arrancou e eu, que gosto dos meus caminhos com neblina, por vezes apenas no embaciado da retina, faço o mesmo, piso a embraiagem, engreno a primeira velocidade, levanto o pé levemente e arranco.
Já não tenho tempo de rever o meu pensamento impresso.
Chego a casa.
Deito-me, fecho os olhos, levanto o meu outro eu levemente e arranco, para lá da vida.

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