Pluviis

“Pluviis”, a crónica de Domingo, na Bird Magazine.

Reinvento a chuva. Hoje traz-me a memória do abraço, a ombreira da porta, os pingos que se volatizam quando em contacto com o corpo de um outro ser. A chuva, sempre a chuva, eu, sempre eu.
O apagado semáforo que teima em sair do tricolor destino, a rua fechada e um trabalhador abrigado sobre as memórias de dias mais coloridos. Olhos semicerrados, as gotículas aquosas de uma quimicidade que não se saber ser água. As costas encostadas ao húmido vestuário, um autocarro que passa prenhe de passageiros conduzidos pelo destino. O destino, sempre o destino.
Sem que me deite ou levante, vou colidindo com os dias que teimam em chover. Um fio depois do outro, tal como os dias, um quadrado congruente com o ecrã onde são projectadas as imagens que desejam que conheçamos. Fútil, assim chamo à mediocridade de carácter, plausível de construir dias e eras de escravidão. Por isso, vou levando a vida empurrando este carrinho de mão, onde transporto argamassa, tijolos e pequenos instrumentos que me permitam construir um quotidiano sem fronteiras, um muro invisível, um recanto semi-sofrível onde se possam abandonar as camisas lavadas e deixar apodrecer a um canto, na esperança que as fungicidades brotem, as acritudes amargas de quem se mede pelo modelo sem se aperceber que o modelo vai nu. Oh, tu, que nos carregas em braços, desde quando a vida te passou a ser disciplina de curto curso curtido em papirescos tecidos de um ténue entrelaçado que são as tuas mãos unidas em oração? Que pedes mais, meu pobre, além de um pouco de pão? Que pedes mais? Quem te ouça, cansado de te ouvir, saberá que tua fome vem de dentro, apercebida que está da insaciedade do ser, esse, que nunca nasceu, vê-se agora a morrer.
Descansa assim em paz, caro companheiro de viagem, dispo-me de ti, para me vestir em tons de barro e argila, não voltarei ao pó, que se desvanece e transforma em vácuo, mas pernoitarei na companhia de mim mesmo, o que sonha e não adormece, porque mesmo no frio o que sou me aquece.
E tu, quem de ramos se brota e embrutece. Saberás classificar o final do dia em meia dúzia de horas, quando o que se amanhece manhã adentro tem restos ainda de ontens e agoras?
Vai, volitai, entre uns quantos uis, um ai, bastará, verás, para te saboreares a cada nota que chova e colida contigo, de mim, tua pluviosidade, teu amigo.
Hoje chove, por mim, pelo caderno virtual que abro no deserto com vista para o nada, e por breves momentos, entre água e nevoeiro, juro ter visto um relâmpago e o troar de um trovão que parece chamar por mim. Trovadora, a Natureza canta-me ao ouvido o sussurro de um abrigo sob duas grandes pedras encavalitadas num equilíbrio eterno, assim adormeço.
No dia que acordei, pouco sobrava da chuva que se escondeu atrás da porta que dá para o mundo.
Dormito para sonhar baixinho com todos os recantos que a vida se encarrega de aconchegar no interior de cada um de nós. Fico com a respiração suspensa porque atrás de um vocábulo vem sempre a frase que ficou por dizer. E eu não digo, nem respiro.

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