Vai tocar para dentro!

Vai tocar para dentro!”, crónica de Domingo na Bird Magazine.

O ano lectivo começou há semanas e continua a surpreender-me pela facilidade com que me transporta para algumas órbitas atrás, quando o cosmos parecia menos caótico e as pessoas bebiam do quotidiano apenas pela necessária sede. Ao ver putos espalharem com desprezo os materiais sobre a superfície de madeira, remeto-me para os corredores superpovoados de crianças ávidas e embriagadas pela oferta. Nesta miscigenada cascata de futilidades e porque as minhas mãos se transportam vazias, para que abracem quando assim tiver que ser, deixo descair o corpo para que me embale a memória e me transporte para os primeiros dias de escola, quando aprendíamos sem saber e o recreio dividia o protagonismo com o Universo, qual deles senhor do melhor e mais vasto horizonte. Quando a brisa acima do umbigo trazia também o entardecer arrefecido do início de Setembro, assinalava-se o sinal inequívoco que as férias ficavam agora a estagiar nas aparas de madeira, nas curvas moldadas pela áspera superfície da lixa grão sessenta, no anoitecer ameno sobre os degraus avermelhados das traseiras da casa dos meus pais, o paraíso voltado, votado, ao silvado que se fazia refúgio de ruídos nocturnos cujos protagonistas nunca soube descodificar e que, por isso, permanecem até hoje baptizados de bichos, assim me perdoe Mestre Torga.
As prateleiras da loja traziam com maior ou menor vistosidade material como canetas, cadernos, lisos ou com padrões que me habituei a associar a latas de bolachas de manteiga, tão boas, tão raras. As capas (agora dossiers) traziam de quando em vez um motivo e eu, na minha feliz indecisão, nunca soube qual o melhor para me suster as grafiadas desenvolturas das matérias para as quais não via utilidade (era jovem, inocente, ignorante e, por isso, puro). Pouca importância teria a decoração da capa ou do caderno, dali a semanas começaria a colar uns autocolantes trocados no recreio, uns desenhos abstratos porque não sei ser objectivo na minha subjectividade e nomes escondidos entre nomes rabiscados tão voláteis eram paixões de criança.
Vejo-me, hoje, na montra da papelaria, sem me reconhecer ao reflexo porque me procuro na estatura própria dos petizes. Vejo os lápis na sua feliz existência preta e amarela, coloridos. As canetas de uma só cor e tampas multi-colores que anunciam o traço fino e sucessivo das linhas paralelas tricolores, azul, vermelho, preto, o porta-lápis com fecho magnético e espaço para arrumar o que nunca consegui conter, entre lápis, canetas e borrachas vermelhas e azuis. Na felicidade da pobreza, nunca houve espaço para comprar o não necessário, o cheiro inaltera-se, e se ainda resistia aquela pueril ânsia de novas coisas, tudo se dissiparia quando o medo do novo no dia ansioso a raiar o primeiro toque de entrada, as mães de braços cruzados no suster da emoção ao seio, as lágrimas bolideiras a orvalharem a manhã, sem sequer avistarem, ainda, os intervalos, as mães no transporte à vez da seira com o almoço embrulhado em jornais e cobertores, como se a comida lhe viesse embalada direta do coração. Pauso-me. Respiro-me.
Começo a não caber nas minhas próprias palavras e memórias agora que moro no silêncio.
Por entre cansaço e indagação filosófica deixo que, como em criança, o fim do dia venha ter comigo, pouse a mão no meu ombro, espreite para a digitalidade e, sorrindo, deixe-me adormecer à luz do candeeiro da cabeceira dos meus pais, sobre os deveres, cálculos aprendidos nas frases repetidas, variações de sonhos e algumas lágrimas iteradas.
Hoje, desaprendendo-me, faço do desconhecido caminho por onde indo nunca tinha ido.

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