Não sei porquê

Não sei porquê”, crónica de Domingo, na Bird Magazine.

Perco alguns minutos a pensar num título, muito por culpa de não saber o que escrever depois do mesmo.
Até onde poderá ir o questionamento? Em todos os cantos do ser, há desejo de partir, de viver mais do que aquilo que a vida permite. Continuo a ser mais do que me dizem ser possível, a sonhar mais do que durmo, continuo a ser astronauta num dia e lavrador noutro, para depois voltar a ser aquele a quem chamam pelo meu nome, entre indústrias e paisagens, entre crentes e ateus, entre os abraços e um adeus.
"Um dia também irás crescer", foi-me dito em mais do que uma ocasião, por entre sorrisos nervosos de quem não via os meus sonhos ou o riso, meu, quando ouço o que sou e me ausculto ao espelho.
Somos doutrinados para crescermos e sermos alguém. Não nos incutem a palavra sonho, apenas crescer e ser alguém. Não falam em desbulhar um talento, em ser-se quem se É, em auscultar o que nossas mãos urdem quando estamos de olhos fechados. Não. Todos devem ser alguém, o que invariavelmente significa alguma projecção, ou seja, ou estuda e doutrina estatuto, ou ganha dinheiro e compra estatuto, ou vira celebridade e esmaece estatuto. Ah, a santíssima trindade. Entristece a falta de motivação para as pessoas serem quem são. Entristece não saber porque razão isto me entristece.
Um badalar ecoa no quarto vazio, talvez trazido pelo inusitado vento fresco desta noite de Verão, pastoreia-me imaginários esverdeados onde, sem perceber, fascino-me quando, em casa dos meus pais, a Farrusca deitada no chão, o desejo de me desfolhar sobre erva, terra e pedras e os condicionalismos vários que adquirimos quando "crescemos" e que nos levam a não fazer aquilo que desejaríamos, mas, invariavelmente, sacudo dos ombros o peso dos olhares e deito-me junto a ela, feliz, felizes, animais de um mundo só.
Concedo-me ao exercício de olhar para mim, o que faço, o que sou? Sou quem quero ser? Ou apenas quem devo ser? E é aqui, neste momento, por vezes taciturno, por vezes eufórico, que rio e choro, que me olho e me escondo, onde concedo à vida desfolhar algumas frases, ainda sem título, mas com vários prólogos no final de cada palavra.
Enquanto escrevo sinto que não sou mais do que uma garatuja, um poema escrito por mim próprio, além, onde ainda não cheguei e já os meus dias são linhas, linhas que não rimam, linhas que saltam de página em página, até que o livro me morra e eu nasça, sem saber porquê e sem imaginar sequer sobre o que fazer com as ideias.
Silenciosamente nascem-me várias histórias, estórias, poemas e contos e obliteram-se ilustrações e agradecimentos finais de livros que ainda não escrevi e não o quero fazer, se me desmontar em frases, palavras, em que tomo poderei eu habitar? E a vida? A vida não me deixa sentar no mesmo local duas vezes, leva-me para onde quer e quando quer, deixando-me com a dilaceração dos relógios e das pessoas, das nuvens e enseadas que moram em mim e me murmuram o barulho do mar.
Não sei porquê (eis o título!), talvez sejam as histórias e as paisagens e a minha ânsia de ser personagem e vislumbrar moinhos quixoteanos em todas as encostas, mas gostava de ser vento, de estar em todos os locais ao mesmo tempo. Enquanto não o sou, perco-me nas identidades do que cogito e escrevo nos ramos despidos das pessoas nuas que passam pelas minhas folhas enquanto escrevo.

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