Caminho alheio à caminhada

“Caminho alheio à caminhada”, crónica de Domingo na Bird Magazine, para ler aqui ou ali.

O que fazer quando as palavras já não se colam aos braços nos dias de calor?
Esmiúça-se na vontade o ínfimo detalhe para que uma história nasça e seja recebida, acarinhada, amada até!, para depois ser depositada no quotidiano com o desejo íntimo de se ser mais palavra do que frase, mais letra do que palavra e, por fim, mais silêncio proferido do que todas as palavras cacofoniadas sem conteúdo num bafiento bocejo de quem se dorme.
A chuva adormeceu e enquanto tarda acordar fecho os olhos e o café ondula em aroma até me cobrir o fim da manhã com a tenacidade dos sonhos.
Nas poças de chuva corre-me o Douro ou o Tua ou o Sousa, cheios!, criando ilhas desprevenidas onde me socorro náufrago.
Não será sempre Inverno, nem Verão, não terei sonhos eternos, nem sempre razão e é pela volatilidade da maré que aspiro ser Açores, deitar-me numa colina e hortensiar-me em tons de azul e lilás e quando não me souber retalhar que venha outrem e sussurre baixinho e a sorrir: está na hora de partir.
Mas para onde me corre a vida, atarefada, no regato de água doce, nas poças em que salto quando não estão a olhar? Torga, que tão facilmente, agradecido prostro-me, me afugentas a sobriedade, para onde me escreveste tu?
Sabes que o tempo não existe quando te deixas levar pelos minutos e te encontras segundos atrás.
Pergunto-me muitas vezes sobre quanto pó se pode acumular no olhar, quantas poeirentas madrugadas se inclinam pelo dia, arrastando consigo o invólucro dos sonhos e dos futuros, um semi-aberto baú onde não cabem caminhos por percorrer, porque não existem ainda.
Será pelo mar? A ondulação que respira, compassadamente, a meus pés enterrados na ânsia de navegar para que me oceaneie e me sorria a maré dourada que se estende pelas sombras do que o Sol não cobre.
Será pelas ondas de lavoura e espuma de milheirais, na irregular costa da simplicidade de amar a terra, eis os despojos sem guerra.
É lá que descem as alegorias e o palco esfumaça-se por onde caminhei, não me calçam os passos nas encostas onde por entre xistos o frio se resguarda encostado ao meu corpo.
Um arado que se verte pelo olhar, eu e as nuvens a suspirar, o texto que teima em falar e eu, navegante, calado, sem me saber sequer vocalizar, porque há um hiato entre as vagas das vidas onde não sei nadar.
Há caminho alheio à caminhada, será por aí a minha estrada.

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