“Quando chegar a hora”

“Quando chegar a hora”, crónica na Bird Magazine (04/08/2018).

A lareira crepita e o bailar das pequenas chamas inunda este espaço com uma luminosidade fugidia. As crianças brincam, alheias à apreensão, animando ainda que fugazmente os adultos que, pensativos, aguardam que eu lhes diga algo. E que hei-de eu dizer? Ter encontrado este local foi sorte, ou talvez não, talvez estivesse escrito algures que isto me seria cedido, a título de empréstimo vitalício, com a intenção clara de não deixar morrer a terra, a casa e os animais.
Chamá-los para virem comigo foi o mais complicado e trabalhoso, houve quem não acreditasse e ainda não acredite, mas vieram ao ver-me resolutamente abandonar tudo e voltar-me para aqui, convicto de que estariam para chegar. Os mais próximos, incluindo os mais cépticos, confiaram em mim e trouxeram algumas pessoas da mesma forma que eu os trouxe, porque tinha que ser, porque alguns tinham-se já predisposto a isto e porque, acima de tudo, a convicção profunda, serena, de ser o passo lógico, ainda que ilógico à luz do nosso conhecimento actual.
E cá estou, cá estamos. Esta casa e os restantes anexos são grandes o suficiente para todos e também para os animais. A comida é suficiente e a terra, ainda que tratada por nós que pouco sabemos destas lides, brinda-nos com frutos, tubérculos, vegetais e toda uma variedade de comida que nos obriga, quase, a fazermos dieta (ainda bem!) forçada, mas saudável.
Agora alguma impaciência se levanta, chove há semanas, sem parar. Algo faz-me levantar e ir para a varanda. Fico lá, em pé, encostado ao pilar de madeira, sem saber muito bem porquê, olhando a chuva cair, escorrer pelas telhas, cair no chão e cavar pequenos buracos que estão já cheios de água. Tenho o pressentimento que chegam, devagar, quando tem que ser e não quando eu pensei que seria. Das nuvens, ainda escuras, vejo formar-se um pequeno ponto de luz, foco a minha vista nele e ele parece aumentar. Aumenta, sim, exponencialmente, é luminoso, no entanto não ilumina, tem um brilho próprio que não ofusca, não se propaga. Ainda chove, sem parar.
Volto para dentro, sorrio, chamo-os para que saiam lá fora. Alguns, com medo petrificaram, outros de admiração pararam, aquela luz, a qual não é mais do que luz, possui algo que atemoriza e que nos torna pequenos, como será possível ter estado sempre cá e não termos visto? Eles não apareceram, nós é que apenas agora os conseguimos visualizar.
Vão caminhando uns e outros, agora sem medo, em direcção àquela luz, atraídos por vultos que parecem murmurar memórias de gentes partidas. Ouço um ou outro suspiro, um ou outro murmúrio de medo, um ou outro pequeno choro abafado à medida que os que se aventuraram primeiro desapareciam, aos nossos olhos, quando entravam naquela luz enevoeirada e esbranquiçada, como se mergulhassem num grande algodão doce salpicado de neblina.
Um a um, lentamente, pareciam desvanecer à medida que se aproximavam daquela luminosidade. Foram todos, apenas eu permaneço aqui. Esperam por mim, tal como esperei por eles, ou talvez por mim mesmo. Vou fechar este livro e deixá-lo apenas com uma marca, hei-de continuar a história com outras letras, outros contos, com relatos desta viagem aos confins de nós mesmos. 
Mas agora... agora vou. Até breve.

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