Homem, casta de tristeza, espécie que tudo lesa

“Homem, casta de tristeza, espécie que tudo lesa”, crónica de Domingo na Bird Magazine.

Os escombros estão a florir em cinzentas tardes, as partículas agremiam-se e fogem apavoradas em pó leve, castanho e ligeiro, como se chovesse solo em polvilho quando as calco inadvertidamente. 
[Até o pó que a terra come agora tem sentimento, alimentado pelo lamento.] 
Os restos da poda e da monda desbastada ao desbarato naqueles fracos braços de gente que, para sobreviver, ignorante, ruminante, sem o saberem de vida arfante, assassina com dó, mas sem  piedade, no ritmo metalizado e etanolizado da serra motorizada, fazendo à máquina aquilo que as mãos não mecanizam: a industrialização da morte. 
[“Era isto ou outra sorte”, ouço]. 
Deixam para o fim o mais frondoso pinheiro onde, à sombra, pousam as garrafas de plástico com água mineralizada por uma terra que os há-de comer, um isqueiro vermelho, as luvas de borracha, o machado para o que se racha e o funil para dar de beberrico à maquineta. Este pinheiro, o qual me habituei a afagar a casca grossa, a mesma que usava para construir barcos que navegavam apenas para satisfação da inocente criancice, observou na cegueira moribunda o cair lento, oscilado, [oscilento], o baque forte, grave, soturno, cavernoso, de outros pinheiros grossos, finos, altos, baixos, caídos desamparados no solo lacrimoso. 
[Deus pariu um filho criminoso.]
Vou com menos cuidado, percorro o campo de batalha e é já a memória que me falha. Onde estão as sombras projectadas propositadamente para que não me transpirasse em demasia a vida e pudesse eu, de costas ao destino, galgar os fetos e o mato sem me aperceber que sou o meu próprio desiderato? 
[Valia-me apenas admirar o literal frondar para me habitar de Torga e ficar calado, sob os vossos ramos, amado.] 
Tropeço pelas poucas pinhas que saltaram 
[ou se esconderam]
dos sacos de serapilheira dos passageiros da existência, espectadores insipientes de um extermínio orquestrado, malicioso, que assomem no pós-guerra com aura vulturina. Antes sacudidas salomonicamente pelo vento, 
[havia deleite em atempar o iluminar da lenha, também esta jorrada em equilíbrio] 
hoje jazem fechadas, lacradas, sem pinhão nem tição, amedrontadas e resignadas, mirando de soslaio restos de ramos dos amos, caruma verde colhida para ser queimada no desprezo avaro de quem nunca fitou os olhos fundos de um braseiro que crepita, a quem o escuta, o silêncio que nos agita. 
[Ao contrário dos lírios, não nos deixou, deles, Cristo um registo]. 
Aninho-me lentamente, a tristeza sopesa a vida, enterro o joelho numa cicatriz de mato seco, verde, cujos picos se vingam na minha pele, pouso os dedos no tronco dilacerado que emerge do solo e as raízes, aterradas, tentam adentrar sofregamente na litosfera. 
A céu aberto arde a angústia. O silêncio vem em golfadas vomitadas pela ansiedade, convulsiono-me e deixo que me sequem as tardes de Verão nos olhos. A resina lacrimeja uma ausência desbravada, uma indulgência perene e digna, que perdoa a quem tanto mal faz e continua a suspirar o ar que respiramos. Sem suster a comoção, deixo-me lacrimejar, sem pranto, no silêncio. 
[Já terá passado uma eternidade?]
Taciturna sina de destruir a árvore que arde, apenas porque um humano a queima. 
Este homem, casta de tristeza, é espécie que tudo lesa.

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