Eles Verão
Eles Verão, crónica do nada, no Correio do Porto.
Faço questão que a vela ilumine o final de dia, perdeu a finalidade de me ajudar num certa hipnose oratória ou abstracionista, para passar a ser a recordação que mantenho de uma vida que não me lembro de ter vivido. A vantagem da luz, na minha escura opinião, é expurgar sombras que permaneciam a ondular à minha volta, projectando-as na parede à minha frente e assumindo, num desígnio que não entendo, um sentido de catarse e catálise, a dicotomia própria de uma vida abaixo de Deus.
O dia ganha forma na rememoração dos episódios que julgava esquecidos, formas extensas em toda a extensão da parede, um pleonasmo da vida, viver depois de viver. É assim que vejo como se ainda conduzisse nesta remendada estrada nacional baptizada com um número, como se fosse ela, e nós, o fruto da atribuição de um algoritmo programada por um ser humano sem ritmo.
Os paus, pedras, folhas e outras minisculanidades batem ofegantes na carroçaria. O soprador apressa-se a afastar da via os restos da cortadura.
Olho com curiosidade a inversão dos papéis tradicionalmente opostos, ele no chão a soprar, atento ao lixo e ao trânsito que embora afastado de vias mais problemáticas mantém uma cadência que não permite grandes distrações, ela a subir com alguma destreza as elevações, a cortar aqui e ali, a ver com certa admiração uma ou outra ave que foge assustada com a invasão dos locais tradicionalmente vivos porque abandonados estão pelos homens. Não resisto a pensar, imaginar, durante o dia que me sobra desta a manhã até ao meio-dia, que naqueles trabalhadores, verdadeiros arquitectos de uma obra que o público não valorizará, poderiam ser um casal, a arte partilhada de serem felizes no meio de nada.
No percurso inverso vejo-os novamente e páro como se fosse deitar algo no contentor do lixo. A carrinha alva e verde, ele encostado ao taipal, o guardanapo branco envolvendo o pão, perna dobrada com o pé apoiado no pneu, um sorriso entre dentadas, ela em pé a olhar para ele, pose feminina por detrás das vestes masculinas, a cara pigmentada de verde pelo que salpicou e passou pela viseira cardada exibe o rosto firme e aveludado de quem pela vida é moldado. O vento atira-lhe uma madeixa para a cara, o cabelo que se prende ao suor e ele, por simpatia, com pudor, sacode a mão no colete e, com o carinho de quem afaga o próprio ninho, tira-lhe o cabelo da face e naquele instante, no sorriso ruborescido dela, o mundo faz sentido.
A vela apaga-se, a cera ondula imperceptivelmente até o frio da estação a enrijecer e votar ao pálido e baço espectro daquilo que ardeu sem intuito de invocar mais do que memórias. Permaneço no escuro, a chuva bate na persiana e tenta entrar, eu calo-me e nesta trindade de chuva, frio e vento ouço Torga falar. Não irei adormecer, não sem antes sorrir e vê-los novamente, encostados ao taipal da carrinha, por entre outras lembranças.
Embora não o vejam hoje por causa do Inverno, um dia eles Verão.
Faço questão que a vela ilumine o final de dia, perdeu a finalidade de me ajudar num certa hipnose oratória ou abstracionista, para passar a ser a recordação que mantenho de uma vida que não me lembro de ter vivido. A vantagem da luz, na minha escura opinião, é expurgar sombras que permaneciam a ondular à minha volta, projectando-as na parede à minha frente e assumindo, num desígnio que não entendo, um sentido de catarse e catálise, a dicotomia própria de uma vida abaixo de Deus.
O dia ganha forma na rememoração dos episódios que julgava esquecidos, formas extensas em toda a extensão da parede, um pleonasmo da vida, viver depois de viver. É assim que vejo como se ainda conduzisse nesta remendada estrada nacional baptizada com um número, como se fosse ela, e nós, o fruto da atribuição de um algoritmo programada por um ser humano sem ritmo.
Os paus, pedras, folhas e outras minisculanidades batem ofegantes na carroçaria. O soprador apressa-se a afastar da via os restos da cortadura.
Olho com curiosidade a inversão dos papéis tradicionalmente opostos, ele no chão a soprar, atento ao lixo e ao trânsito que embora afastado de vias mais problemáticas mantém uma cadência que não permite grandes distrações, ela a subir com alguma destreza as elevações, a cortar aqui e ali, a ver com certa admiração uma ou outra ave que foge assustada com a invasão dos locais tradicionalmente vivos porque abandonados estão pelos homens. Não resisto a pensar, imaginar, durante o dia que me sobra desta a manhã até ao meio-dia, que naqueles trabalhadores, verdadeiros arquitectos de uma obra que o público não valorizará, poderiam ser um casal, a arte partilhada de serem felizes no meio de nada.
No percurso inverso vejo-os novamente e páro como se fosse deitar algo no contentor do lixo. A carrinha alva e verde, ele encostado ao taipal, o guardanapo branco envolvendo o pão, perna dobrada com o pé apoiado no pneu, um sorriso entre dentadas, ela em pé a olhar para ele, pose feminina por detrás das vestes masculinas, a cara pigmentada de verde pelo que salpicou e passou pela viseira cardada exibe o rosto firme e aveludado de quem pela vida é moldado. O vento atira-lhe uma madeixa para a cara, o cabelo que se prende ao suor e ele, por simpatia, com pudor, sacode a mão no colete e, com o carinho de quem afaga o próprio ninho, tira-lhe o cabelo da face e naquele instante, no sorriso ruborescido dela, o mundo faz sentido.
A vela apaga-se, a cera ondula imperceptivelmente até o frio da estação a enrijecer e votar ao pálido e baço espectro daquilo que ardeu sem intuito de invocar mais do que memórias. Permaneço no escuro, a chuva bate na persiana e tenta entrar, eu calo-me e nesta trindade de chuva, frio e vento ouço Torga falar. Não irei adormecer, não sem antes sorrir e vê-los novamente, encostados ao taipal da carrinha, por entre outras lembranças.
Embora não o vejam hoje por causa do Inverno, um dia eles Verão.
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