Dois lados da mesma moeda sem valor
Dois lados da mesma moeda, mais uma Crónica do Nada, no Correio do Porto.
Escolho salada de atum sem qualquer alternativa. A funcionária funga um sorriso por baixo dos óculos embaciados e, ao mesmo tempo, grita alto o suficiente para que o pedido entre pelo postigo, ladeado por um papel de parede encardido de pedidos, sebosos, que escorrem asperamente ao longo dos tempos. Pouco tempo depois, a bandeja de metal bate pesadamente no mármore entranhado, o molho de azeite e vinagre saltam por entre o feijão frade, a salsa sacode-se como os cabelos oleosos que conseguem fugir da prisão da touca amarelecida da cozinheira, e tilinta o atum, recém libertado do balde de plástico, com alvas semelhanças com as taínhas que vi à boca do esgoto como loucos saltimbancos em pirâmides humanas lutando pela proximidade dos dejectos.
Como directamente da bandeja, a rapariga leva o prato, limpa-o com o pano que traz à cintura e coloca-o no topo da pilha, deduzo que para mais tarde o entregar a outro cliente. A comida está surpreendentemente boa. Talvez porque, acredito, que o que me alimente agora seja a sala repleta de trabalhadores, alguns envergando ainda os cintos de ferramentas, as calças pintadas com restos de tinta de várias obras, um outro, mais distraído, usa ainda o boné da cor da preferência clubística e prendo o olhar num solitário. Come na ponta da mesa partilhada com outros operários, uma formiga de outro formigueiro, o lápis vermelho espreita a comida preso à sua orelha habituado apenas à textura da madeira ou do gesso. Os feijões, a salsa, a cebola e o tomate seguem o caminho memorizado, são alojados paciente e ordeiramente no prato, o garfo e a faca coreografados sem um tinir, a solenidade de se saber perfeição no meio do confuso caos metafórico e até pleonasmificado. O telemóvel toca, olha o visor e um sorriso floresce, atende-o “Estou? Filho? Como estás campeão? Eu? Eu estou de férias agora, a ver o rio e a comer um petisco. E tu? Já comeste? Não estás a chatear a mãe? Vais para a escola de tarde? Que bom! Aprende muito, para depois me ensinares, está bem? Se te portares bem até te levo uma coisa boa logo!”. Termina a chamada, guarda o telemóvel, desembrulha um guardanapo de papel e, cuidadosamente, retira o atum da bandeja, aperta-o entre o garfo e a faca para que as escorrências azeitadas e avinagradas saiam e, depois, deposita-o no pão aberto com o cuidado de quem deita um filho na cama. Quando o ritual termina, o pão é guardado dentro do casaco, o sorriso nasce e a vida fica um pouco mais perfeita.
Na sala ao lado, decorada com motivos regionais de uma aldeia globalizada, os pedidos são suavizados pelo arranhar inglesado e a simpatia forçada para os turistas, alheios alguns à vida que se escorre por dentro de outras vidas.
Dois lados da mesma moeda, num mundo onde o dinheiro se sobrepôs ao valor da vida.
Escolho salada de atum sem qualquer alternativa. A funcionária funga um sorriso por baixo dos óculos embaciados e, ao mesmo tempo, grita alto o suficiente para que o pedido entre pelo postigo, ladeado por um papel de parede encardido de pedidos, sebosos, que escorrem asperamente ao longo dos tempos. Pouco tempo depois, a bandeja de metal bate pesadamente no mármore entranhado, o molho de azeite e vinagre saltam por entre o feijão frade, a salsa sacode-se como os cabelos oleosos que conseguem fugir da prisão da touca amarelecida da cozinheira, e tilinta o atum, recém libertado do balde de plástico, com alvas semelhanças com as taínhas que vi à boca do esgoto como loucos saltimbancos em pirâmides humanas lutando pela proximidade dos dejectos.
Como directamente da bandeja, a rapariga leva o prato, limpa-o com o pano que traz à cintura e coloca-o no topo da pilha, deduzo que para mais tarde o entregar a outro cliente. A comida está surpreendentemente boa. Talvez porque, acredito, que o que me alimente agora seja a sala repleta de trabalhadores, alguns envergando ainda os cintos de ferramentas, as calças pintadas com restos de tinta de várias obras, um outro, mais distraído, usa ainda o boné da cor da preferência clubística e prendo o olhar num solitário. Come na ponta da mesa partilhada com outros operários, uma formiga de outro formigueiro, o lápis vermelho espreita a comida preso à sua orelha habituado apenas à textura da madeira ou do gesso. Os feijões, a salsa, a cebola e o tomate seguem o caminho memorizado, são alojados paciente e ordeiramente no prato, o garfo e a faca coreografados sem um tinir, a solenidade de se saber perfeição no meio do confuso caos metafórico e até pleonasmificado. O telemóvel toca, olha o visor e um sorriso floresce, atende-o “Estou? Filho? Como estás campeão? Eu? Eu estou de férias agora, a ver o rio e a comer um petisco. E tu? Já comeste? Não estás a chatear a mãe? Vais para a escola de tarde? Que bom! Aprende muito, para depois me ensinares, está bem? Se te portares bem até te levo uma coisa boa logo!”. Termina a chamada, guarda o telemóvel, desembrulha um guardanapo de papel e, cuidadosamente, retira o atum da bandeja, aperta-o entre o garfo e a faca para que as escorrências azeitadas e avinagradas saiam e, depois, deposita-o no pão aberto com o cuidado de quem deita um filho na cama. Quando o ritual termina, o pão é guardado dentro do casaco, o sorriso nasce e a vida fica um pouco mais perfeita.
Na sala ao lado, decorada com motivos regionais de uma aldeia globalizada, os pedidos são suavizados pelo arranhar inglesado e a simpatia forçada para os turistas, alheios alguns à vida que se escorre por dentro de outras vidas.
Dois lados da mesma moeda, num mundo onde o dinheiro se sobrepôs ao valor da vida.
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