A saudade cabe-nos na mão
“A saudade cabe-nos na mão”, crónica de Domingo, na Bird Magazine.
Pelo caminho para a escola havia de se passar por uma fila de casas que se comprimiam ao longo das portas e janelas rendilhadas, parecendo que alguém teria feito daquele aglomerado uma concertina em tamanho grande, comprimida, sem fôlego, à espera que por algum desígnio se conseguisse escapulir e expandir, libertando a sonoridade a que isso fora vetada.Tudo é permitido à imaginação quando se tem olhos de criança.
À janela, outrora, cabiam sempre as mesmas vestes negras sob a padieira, as faces enrugadas e o horizonte ainda curto, cujo tempo faria o favor aos homens de desbastarem primeiro as copas das árvores, depois o resto das mesmas e, por fim, o monte todo, dando azo agora a ver prédios e estruturas inimagináveis noutros tempos, talvez porque noutros tempos a imaginação era parca, limitando-se a descortinar sombras entre esteios e medas de palha e lançar os boatos e lendas de gente perdida pelas colheitas e os anos de azar que daria a quem o descobrisse.
Os anos passam-nos, a acuidade visual diminui desgastada pelo tempo e pelos tubos de raios catódicos, adquire-se mais uns palmos de gente e pensamos conseguir ver mais e melhor, no entanto, aquela rua, apertada pelos muros que começam já a dar sinais de desgaste e cansaço como velhas tiras de couro ressequidas pelo descuidado abandono, já não tem o horizonte curto do espaço que se percorre daqui ao infinito.
Das vielas laterais já não saem miúdos, pequenos afluentes a desemborcar num rio principal cujo tráfego se resumia a petizes pés no chão, batendo compassadamente na corrida, suplantados pelo bater nas costas das velhas mochilas e, dentro destas, dos livro, sebentas e lápis aos tombos numa mistura multifrutada de saberes e sabores, agradavelmente saborosos porque o pomar onde se aprendia era feito de árvores inocentes. Se antes se parava na rua, não havendo um postigo aberto, facilmente surgiria o vulto atrás da cortina, para depois rodar a maçaneta do enferrujado, trazendo ao dia o luto eterno de quem permanece imortal do lado de lá da vida. Hoje, se paro na rua, poucas sombras se vultalizam atrás da cortina e já nenhuma destranca o ferrolho, espreita-se timidamente e volta-se aos afazeres televisivos. Planta-se um “Bom dia!” que já não se colhe.
Na minha boca sobrevive o sabor granulado da boroa caseira, a cebola cortada e os pedregulhos de sal, todos facilmente imersos na torrente negra do café com açúcar, mexido pela baça colher da sopa, que se leva à boca na retorcida caneca de metal com cuidado para não se comer demasiada borra, enquanto as roupas molhadas da escola secam nas costas da cadeira virada para a lareira.
As ruas trazem música abafada, os meus passos calcam-se a si mesmos e quando me desfaso da realidade quase sou derrubado por mim, puto, passando a correr para a escola, com os pés a baterem no chão e os livros, sacudidos, dentro da mochila, ao sabor de tudo o que irei aprender ao ser eu mesmo. A saudade cabe-nos na mão e caberia no olhar, se não fôssemos cegos.
Pelo caminho para a escola havia de se passar por uma fila de casas que se comprimiam ao longo das portas e janelas rendilhadas, parecendo que alguém teria feito daquele aglomerado uma concertina em tamanho grande, comprimida, sem fôlego, à espera que por algum desígnio se conseguisse escapulir e expandir, libertando a sonoridade a que isso fora vetada.Tudo é permitido à imaginação quando se tem olhos de criança.
À janela, outrora, cabiam sempre as mesmas vestes negras sob a padieira, as faces enrugadas e o horizonte ainda curto, cujo tempo faria o favor aos homens de desbastarem primeiro as copas das árvores, depois o resto das mesmas e, por fim, o monte todo, dando azo agora a ver prédios e estruturas inimagináveis noutros tempos, talvez porque noutros tempos a imaginação era parca, limitando-se a descortinar sombras entre esteios e medas de palha e lançar os boatos e lendas de gente perdida pelas colheitas e os anos de azar que daria a quem o descobrisse.
Os anos passam-nos, a acuidade visual diminui desgastada pelo tempo e pelos tubos de raios catódicos, adquire-se mais uns palmos de gente e pensamos conseguir ver mais e melhor, no entanto, aquela rua, apertada pelos muros que começam já a dar sinais de desgaste e cansaço como velhas tiras de couro ressequidas pelo descuidado abandono, já não tem o horizonte curto do espaço que se percorre daqui ao infinito.
Das vielas laterais já não saem miúdos, pequenos afluentes a desemborcar num rio principal cujo tráfego se resumia a petizes pés no chão, batendo compassadamente na corrida, suplantados pelo bater nas costas das velhas mochilas e, dentro destas, dos livro, sebentas e lápis aos tombos numa mistura multifrutada de saberes e sabores, agradavelmente saborosos porque o pomar onde se aprendia era feito de árvores inocentes. Se antes se parava na rua, não havendo um postigo aberto, facilmente surgiria o vulto atrás da cortina, para depois rodar a maçaneta do enferrujado, trazendo ao dia o luto eterno de quem permanece imortal do lado de lá da vida. Hoje, se paro na rua, poucas sombras se vultalizam atrás da cortina e já nenhuma destranca o ferrolho, espreita-se timidamente e volta-se aos afazeres televisivos. Planta-se um “Bom dia!” que já não se colhe.
Na minha boca sobrevive o sabor granulado da boroa caseira, a cebola cortada e os pedregulhos de sal, todos facilmente imersos na torrente negra do café com açúcar, mexido pela baça colher da sopa, que se leva à boca na retorcida caneca de metal com cuidado para não se comer demasiada borra, enquanto as roupas molhadas da escola secam nas costas da cadeira virada para a lareira.
As ruas trazem música abafada, os meus passos calcam-se a si mesmos e quando me desfaso da realidade quase sou derrubado por mim, puto, passando a correr para a escola, com os pés a baterem no chão e os livros, sacudidos, dentro da mochila, ao sabor de tudo o que irei aprender ao ser eu mesmo. A saudade cabe-nos na mão e caberia no olhar, se não fôssemos cegos.
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