Infinitamente infinito

Crónica na Bird Magazine.

Quando o frio surgiu, não havia ponta por onde pegar. A braseira repuxava o frio contra o tecto, o calor amainava o ânimo, mas ainda assim havia a esperança inocente de quem tenta ver no nada o infinitamente infinito. O cheiro a rabanadas era complementado com o barulho do refugar na frigideira, o pousar dos pratos no mármore manchado e o arrastar da mesa para tirar um banco e pendurar, às escondidas, uma pinha de chocolate no pinheirinho, enquanto a criança se entretém no chão da sala, a tecer finas teias de número em número, até encontrar a figura final. Sabia a Natal.
De vez em quando a porta da cozinha é aberta, apura-se o ouvido e olha-se para o relógio, deve ser horas do comboio chegar. 
- Já chegou mãe?
A Maria deste presépio sorri, engole a ânsia, volta para dentro e vai ter com o filho, ainda no chão da sala, agora a fazer dos pequenos tacos de madeira pequenas elevações por onde brinca com o carrinho imaculadamente pobre, passa as mãos no avental e, secas e ásperas, afaga-lhe o cabelo. 
Ele levanta a cabeça e os olhos pequenos e azuis encontram-se com o rubor da braseira, a cara da mãe atrás da cortina ondulante do calor que se espreme na noite, e ainda que longe das indagações adultas, permite-se questionar que realidade o pariu, a anunciação social que o marcou com nove dígitos ou o amor brasonado de duas almas encarnadas, escancaradas e matrizadas, num pequeno presépio invisível a quem nunca viu?
Na mesa não cabem mais pratos, bolo-rei a transpirar açúcar branco em pó, pequenos pires com filhoses, sonhos, docinhos de bolina, frutos secos, uvas passas, alguma fruta cristalizada, uns rolinhos feitos com queijo, uma caixa de sortido ainda por abrir, uma travessa dividida a meio com leite-creme torrado aqui e ali em forma de coração e, na outra metade, aletria com motivos abstractos e uma estrela cadente tudo desenhado com amor e, também, canela.
A porta abre, a criança levanta a cabeça e o próprio calor parece pausar-se quando o pai entra em casa, o bafo que volita enquanto acalma a respiração, os braços da mulher ao redor do pescoço, o cabelo na testa suada e engordurada que ele, gentilmente, afasta, o beijo na testa e o tocar de lábios, boca na boca, como a reanimação da humanidade. O filho agarra-se à sua perna, enquanto ele, pai, tira o seu gorro e o coloca na cabeça do pequeno que, feliz, se sente homem por vestimenta de adulto.
Não tarda para que a noite passe, a trindade num presépio iluminado por um céu estrelado na admiração salvadora do amor em forma de metáfora. As luzes apagam-se, três corpos deitados na cama de casal, a mulher esgotada pela labuta de um dia feliz dorme, o homem mergulha na lentidão do sono embalado na certeza de um amanhã de descanso e a criança, desperta, ao ver os progenitores dormirem, coloca o gorro do pai, puxa-o para cima dos olhos e enrola os seus deditos nas mãos adultas que o moldaram. Natal é noite de mundos que se amaram.

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