Com eira, sem beira
Crónica de domingo, na Bird Magazine.
Curva contra curva, as retas sucedem-se também tortas, o pequeno-almoço bamboleia desprotegido no estômago e começo a pensar se não será desta vez a primeira em que irei ficar mal disposto ao volante. Paro no que seria suposto ser um miradouro, o chão calcetado apresenta fosseis de folhas de eucalipto e memórias de quem por lá parou, acredito que em noites mais sombrias e frias, onde a cegueira do amor possa ver o que dois corpos jovens, ávidos, têm a dizer um ao outro.
Não satisfeito com o local arranco, mais uma mão cheia de curvas e encontro o local perfeito. O Sol irá em breve transformar o granito dos bancos em solarengo repouso, desligo o carro, abra a porta e rio-me da estupidez habitual em tentar sair do carro sem desapertar o cinto. Já sem cinto, física e homofonicamente, espreguiço-me com o à vontade de saber que ninguém está a ver. Ao fundo o Douro serpenteia, com mais ou menos sede, alheio às vontades de quem o navega sem valorizar a corrente de quem rio nunca se sente. Como previ, o Sol está agora a sair por detrás dos eucaliptos. Atrás de mim, mais acima, a encosta dourada em ocre queimada rivaliza com o vazio a tristeza, o chão negro lembra-me o chão negro e por isso mesmo entristeço-me. Debruço-me sem muita preocupação sobre o gradeado esverdeado, tenho que o fazer para fugir à sombra que a placa de um qualquer fundo europeu espalha.
É ali que vejo o telhado, à minha direita, do que me parece ser uma palheiro ou eira. Deito um olhar ao carro, adormeceu, acredito que cansado da música que lhe dou a ouvir e do trajecto irregular pelo qual o faço rodar (talvez assim saiba o que é ser-se eu). Alço-me sobre a grade e vou descendo, umas vezes com o cú, o carreiro cheio de folhas ainda molhadas. Acabo por parar com os pés na lousa, onde já uns riscos de luz ganham eira, sacudo as mãos e fico parado, ofegante, sem saber como subirei o caminho de volta. Ou se o quero fazer.
Alguém parece ter transformado o palheiro em casa, se ainda por cá mora não sei. Alto de mais para um piso, baixo de mais para dois, caminho em direção à porta e o ferrolho de madeira abre-se sem que o alavanque. Cheira a vazio e a vida. Umas calças estendidas sobre o resto de um braseiro.
Há espaço suficiente para o que se leva connosco quando decidimos ser fumo. O quarto fica no baixo primeiro piso, em cima de uma barra de batatas, a cadeira com restos de roupa balança tristemente ao ritmo do meu olhar. A janela é apenas um bocado do telhado sem telhas, permite ver o céu estrelado e deverá ser o despertador de todos os dias, tardio agora que amanhece depois da hora. Uma palete improvisa biblioteca e vários livros fitam-me, ensonados. Só depois o vi, ao canto, entorpecido, a dormir sob uma espécie de bata azul, escura, de trabalho. E ali tudo fez sentido, para mim, quando os meus olhos fecharam abriram-se os livros, e as letras acolheram-no. O colchão transformou-se em folhas, depois em letras que, volitando, o levaram a um céu que nunca ninguém conseguiu escrever.
Curva contra curva, as retas sucedem-se também tortas, o pequeno-almoço bamboleia desprotegido no estômago e começo a pensar se não será desta vez a primeira em que irei ficar mal disposto ao volante. Paro no que seria suposto ser um miradouro, o chão calcetado apresenta fosseis de folhas de eucalipto e memórias de quem por lá parou, acredito que em noites mais sombrias e frias, onde a cegueira do amor possa ver o que dois corpos jovens, ávidos, têm a dizer um ao outro.
Não satisfeito com o local arranco, mais uma mão cheia de curvas e encontro o local perfeito. O Sol irá em breve transformar o granito dos bancos em solarengo repouso, desligo o carro, abra a porta e rio-me da estupidez habitual em tentar sair do carro sem desapertar o cinto. Já sem cinto, física e homofonicamente, espreguiço-me com o à vontade de saber que ninguém está a ver. Ao fundo o Douro serpenteia, com mais ou menos sede, alheio às vontades de quem o navega sem valorizar a corrente de quem rio nunca se sente. Como previ, o Sol está agora a sair por detrás dos eucaliptos. Atrás de mim, mais acima, a encosta dourada em ocre queimada rivaliza com o vazio a tristeza, o chão negro lembra-me o chão negro e por isso mesmo entristeço-me. Debruço-me sem muita preocupação sobre o gradeado esverdeado, tenho que o fazer para fugir à sombra que a placa de um qualquer fundo europeu espalha.
É ali que vejo o telhado, à minha direita, do que me parece ser uma palheiro ou eira. Deito um olhar ao carro, adormeceu, acredito que cansado da música que lhe dou a ouvir e do trajecto irregular pelo qual o faço rodar (talvez assim saiba o que é ser-se eu). Alço-me sobre a grade e vou descendo, umas vezes com o cú, o carreiro cheio de folhas ainda molhadas. Acabo por parar com os pés na lousa, onde já uns riscos de luz ganham eira, sacudo as mãos e fico parado, ofegante, sem saber como subirei o caminho de volta. Ou se o quero fazer.
Alguém parece ter transformado o palheiro em casa, se ainda por cá mora não sei. Alto de mais para um piso, baixo de mais para dois, caminho em direção à porta e o ferrolho de madeira abre-se sem que o alavanque. Cheira a vazio e a vida. Umas calças estendidas sobre o resto de um braseiro.
Há espaço suficiente para o que se leva connosco quando decidimos ser fumo. O quarto fica no baixo primeiro piso, em cima de uma barra de batatas, a cadeira com restos de roupa balança tristemente ao ritmo do meu olhar. A janela é apenas um bocado do telhado sem telhas, permite ver o céu estrelado e deverá ser o despertador de todos os dias, tardio agora que amanhece depois da hora. Uma palete improvisa biblioteca e vários livros fitam-me, ensonados. Só depois o vi, ao canto, entorpecido, a dormir sob uma espécie de bata azul, escura, de trabalho. E ali tudo fez sentido, para mim, quando os meus olhos fecharam abriram-se os livros, e as letras acolheram-no. O colchão transformou-se em folhas, depois em letras que, volitando, o levaram a um céu que nunca ninguém conseguiu escrever.
Comentários