Ad infinitum
Crónica de domingo, na Bird Magazine.
Ouço gemer, um ligeiro soluçar. A tarde quente, abafada, convida a passar o consciente pelas brasas, permitir à alma soltar-se um pouco e sorver vida.
Continuo a ouvir soluçar, abro a janela e nada que justifique o som vejo, apenas a paisagem ondulante de eucaliptos, campos arados e casas ao longe.
O soluçar, agora mais intenso, parece vir do andar inferior. Sem fechar a janela do local onde estou, desço os degraus lentamente, tentando antever o que irei encontrar.
O único barulho que ouço são os meus pés descalços em contacto com a madeira.
Empurro a porta da sala e saio, dou três passos em direcção à escadaria, não vejo nada à frente, à esquerda ou direita. Fecho a porta. Vou para a cozinha, agora com os pés na tijoleira fria, chegado lá descerro a porta que dá acesso ao exterior e vejo-a, com surpresa, encostada à parede, fugindo do calor do sol, aninhada, a soluçar, com a cabeça coberta pelos pequenos braços, sujos. As vestes, velhas e puídas, pareciam saídas de uma escavação arqueológica ou do fundo do coração de alguém que não se sabe alguém.
Aninho-me e toco-lhe na cabeça, o cabelo espesso de sujidade, escuro. Ao sentir o meu toque levanta a cabeça lentamente, na cara as lágrimas tinham aberto caminho pela sujidade e pareciam leitos de rio, que corriam para os olhos, um mar de lágrimas serenas e resignadas. Olhando-a, o rosto de sofrimento, abraço-a. Deixa agora de soluçar para soltar apenas longos suspiros à medida que respira.
Com a porta aberta, convido-a a entrar e pergunto se quer comer alguma coisa. A minha fartura é o mínimo, o essencial, nada que se apresente a convidados, mas ela parece adorar e aponta para as bolachas. Come duas rapidamente e depois, mais devagar, à medida que respira já sem suspirar, come mais uma, lentamente, em pequenas mordidas. Segura as bolachas com as duas mãos enquanto as come. Quando termina limpa a boca com as costas da mão suja e olha para mim. Sorri-me, baixa rapidamente a cabeça com timidez, ao fazê-lo vê as migalhas que tinha feito e apressa-se a baixar-se para as apanhar com o dedito e come-a. Levo a minha mão ao seu ombro e levanto-a, digo-lhe que não te, importância e ofereço-lhe outra bolacha, que ela come.
Saciada, pergunto-lhe o de onde vem, quem é, qual a idade, mas ela nada diz e os seus olhos marejam lágrimas. Sorrio-lhe, não deverás ter mais do que 5 anos, digo-lhe, mas o seu olhar diz-me não, tem milhares de anos, mais do que posso contar. Pergunto-lhe, agora, o nome. Diz-me, audível apesar da voz sumida, que se chama Amizade. O calor fora de época tolhe-me a consciência, indago-me como pode alguém ser tão velho e ao mesmo tempo possuir aparência infantil? Responde-me que nunca chega a crescer, não a deixam expandir. Ao fim de pouco tempo é esquecida, relembrada apenas quando dela necessitam, minguada como a flor não colhida a quem a Natureza se esqueceu de regar. Fica parada, olha para mim, e naquele olhar compreendo a dor, a ausência.
Não fala mais, mas ouço todos os seus murmúrios, alegrias e lágrimas que lhe pintaram vários dias. Limpo-lhe as lágrimas, abraço-a e sem intenção de a deixar partir, abro-lhe a porta do que sou, deixo-a crescer.
Alimento-a diariamente. Ocasionalmente alguém surge com o desejo de a ver e sentir, indo-se depois embora como quem mata a sede numa fonte ou consulta rapidamente os quilómetros num marco de estrada.
E fico novamente, eu e ela, só, em paz, ad infinitum.
Ouço gemer, um ligeiro soluçar. A tarde quente, abafada, convida a passar o consciente pelas brasas, permitir à alma soltar-se um pouco e sorver vida.
Continuo a ouvir soluçar, abro a janela e nada que justifique o som vejo, apenas a paisagem ondulante de eucaliptos, campos arados e casas ao longe.
O soluçar, agora mais intenso, parece vir do andar inferior. Sem fechar a janela do local onde estou, desço os degraus lentamente, tentando antever o que irei encontrar.
O único barulho que ouço são os meus pés descalços em contacto com a madeira.
Empurro a porta da sala e saio, dou três passos em direcção à escadaria, não vejo nada à frente, à esquerda ou direita. Fecho a porta. Vou para a cozinha, agora com os pés na tijoleira fria, chegado lá descerro a porta que dá acesso ao exterior e vejo-a, com surpresa, encostada à parede, fugindo do calor do sol, aninhada, a soluçar, com a cabeça coberta pelos pequenos braços, sujos. As vestes, velhas e puídas, pareciam saídas de uma escavação arqueológica ou do fundo do coração de alguém que não se sabe alguém.
Aninho-me e toco-lhe na cabeça, o cabelo espesso de sujidade, escuro. Ao sentir o meu toque levanta a cabeça lentamente, na cara as lágrimas tinham aberto caminho pela sujidade e pareciam leitos de rio, que corriam para os olhos, um mar de lágrimas serenas e resignadas. Olhando-a, o rosto de sofrimento, abraço-a. Deixa agora de soluçar para soltar apenas longos suspiros à medida que respira.
Com a porta aberta, convido-a a entrar e pergunto se quer comer alguma coisa. A minha fartura é o mínimo, o essencial, nada que se apresente a convidados, mas ela parece adorar e aponta para as bolachas. Come duas rapidamente e depois, mais devagar, à medida que respira já sem suspirar, come mais uma, lentamente, em pequenas mordidas. Segura as bolachas com as duas mãos enquanto as come. Quando termina limpa a boca com as costas da mão suja e olha para mim. Sorri-me, baixa rapidamente a cabeça com timidez, ao fazê-lo vê as migalhas que tinha feito e apressa-se a baixar-se para as apanhar com o dedito e come-a. Levo a minha mão ao seu ombro e levanto-a, digo-lhe que não te, importância e ofereço-lhe outra bolacha, que ela come.
Saciada, pergunto-lhe o de onde vem, quem é, qual a idade, mas ela nada diz e os seus olhos marejam lágrimas. Sorrio-lhe, não deverás ter mais do que 5 anos, digo-lhe, mas o seu olhar diz-me não, tem milhares de anos, mais do que posso contar. Pergunto-lhe, agora, o nome. Diz-me, audível apesar da voz sumida, que se chama Amizade. O calor fora de época tolhe-me a consciência, indago-me como pode alguém ser tão velho e ao mesmo tempo possuir aparência infantil? Responde-me que nunca chega a crescer, não a deixam expandir. Ao fim de pouco tempo é esquecida, relembrada apenas quando dela necessitam, minguada como a flor não colhida a quem a Natureza se esqueceu de regar. Fica parada, olha para mim, e naquele olhar compreendo a dor, a ausência.
Não fala mais, mas ouço todos os seus murmúrios, alegrias e lágrimas que lhe pintaram vários dias. Limpo-lhe as lágrimas, abraço-a e sem intenção de a deixar partir, abro-lhe a porta do que sou, deixo-a crescer.
Alimento-a diariamente. Ocasionalmente alguém surge com o desejo de a ver e sentir, indo-se depois embora como quem mata a sede numa fonte ou consulta rapidamente os quilómetros num marco de estrada.
E fico novamente, eu e ela, só, em paz, ad infinitum.
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