Azedume
Crónica. Domingo. Bird Magazine.
As tardes de Verão tiveram quase sempre,
no meu imaginário, três ou quatro bandas sonoras, monótonas, taciturnas e muito
pouco animadoras. Hoje não é excepção. A sirene dos bombeiros lamenta-se
arrastadamente, fecho os estores e imagino que seja noite, com a sua longa
túnica pontilhada aqui e ali com tremeluzentes pontos, longos, inimagináveis
distâncias de tempos em que eu, deduzo, fosse um outro qualquer aglomerado de
átomos, uma abundância relativa noutras percentagens, um isótopo ou apenas e só
o pontilhado feliz e errante dos electrões que surgem e desaparecem nos
diferentes níveis de energia. Ouço os carros zunirem, alternamente, novamente,
a sirene dos bombeiros brame na quente tarde enquanto alguém se queixa do
barulho,
- há quem tenha crianças para dormir
Sacudo a cabeça, antes fosse noite e todas
as vozes que não chegam ao céu se calassem por momentos, se cingissem ao gutural
arrastado de um ronco que sai da cavernosa reentrância para o vazio, que é a
boca de quem protesta.
- não se pode com este cheiro a fumo nas
casas
Ouço por entre o barulho do longo tapete
castanho com riscas cor-de-laranja, ondulando ao sabor da jugular força de
braços, a maré de pó que se esbate na praia das janelas dos pisos inferiores.
Não, não se pode com o fumo. Acredito que o lamentar se deva ao cheiro que se
incrusta nas narinas e não, nem por um momento, pelas assustadas aves
afugentadas pelo fumo, os coelhos e lebres, os raros esquilos, os inusitados
texugos que não acreditam ter visto, as fogueadas raposas e toda a bicharada
alada, corredora ou rastejante, fugindo para proteger o pelo, a pele, a
quitina.
- esta nortada, dá cabo da praia e das
férias, que nojo
E claro, o enjoado opinar dever-se-á,
tampouco, pela necessidade de dobrar o guarda-sol, escarrar e abafar duas ou
três beatas na areia acompanhadas pela garrafa de cerveja, deixar para trás o
pau do gelado ou o brinquedo que saiu no HappyMeal. Nunca seria preocupação
pelo alimentar das labaredas que continuam sem dar descanso a centenas de
homens e mulheres, enfarruscados, com o cansaço a gotejar nas faces.
- às tantas são eles que chegam o lume
para ganhar uns trocos
E nada me surpreende mais depois disto.
Rio num esgar de escárnio e divirto-me a imaginar os seus próprios umbigos como
um sepulcral buraco negro para onde escorre toda a estupidez que exala dos
pensamentos em forma de opiniões.
- não se pode com o que escreves
E nada mais do que fazendo a vontade a
quem se habitua a ser parede, continuo a azedar-me e fico-me por aqui. Um dia
deslevedo-me, volto a ser cereal e daí ao suor da mão de um agricultor bastará
um fino cordão de prata para voltar ao local de onde não deveria ter saído.
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