Trovão
Crónica de Domingo, na Bird Magazine.
Começou com as nuvens negras a ofuscarem a luminosidade da tarde, abrigado que estou do calor, do Sol e da vida durante os meses quentes, pareceu-me bom augúrio. Começo a olhar para o relógio e a forçar a passagem dos minutos, mas tudo tem o seu tempo, até o próprio tempo.
A tarde começa a cair triste e soturna, os grandes flocos cinzentos parecem empurrar os alvos para bem lá do Marão, onde mandarão os de bom coração. Aqui começam a surgir os mais escuros, um cinza azulado negro saboreado, a cor que lhes dou quando me prometem aguaceiros por meio dos bafientos dias de Verão. De repente o vento aparece a correr, abana as montras, assobia de excitação, empurra portas entreabertas (não queremos cá indecisões, “ou abertas ou fechadas!”, diz-me ele, apressado), sacode os cabelos dos transeuntes, fá-los apertar a parca e veraneada roupa ao corpo. Quando vai já longe, perdendo um pouco mais de tempo a enrodilhar uma bandeira desfraldada, ouço o ribombar da trovoada. Os meus pelos eriçam-se, não de medo ou instinto, não de invocação a uma sossegada Bárbara, mas de excitação, um quase poder saborear a tensão, o rasgar numa fisgada aguda e repentina o ar que me separa do nada e, depois, o estremecimento, o ofuscamento ainda e o sacudir de todas as células do meu corpo.
Assim fosse o silêncio. Repentino. Intimidador. Acompanhado do infinito.
- Se vais sair leva o carro, vais molhar-te! - Sou parco de audição no que concerne a conselhos que não quero seguir. Abro a janela da sala, ergo o estore, pouso as mãos no parapeito frio e já molhado, encosto a cabeça à chuva que cai e sorrio. De passo apressado, quem nunca se molhou corre sobre os paralelos já cobertos de água, o guarda-chuva encolhe-se sobre si mesmo, as varetas soluçam e tremem, enferrujadas pelo não uso, como a palavra e o amor. As caleiras engasgam-se no vómito de expelir o que do céu cai, a chuva cai apressada consciente da brevidade do momento de precipitação nesta estação e saio decido à rua.
Levo um pequeno guarda-chuva como medida de defesa da mesologia. Quero lá saber se chove? Aliás, quero saber que chove e no meio disto, quero a chuva em mim, de cima a baixo!
Entro no terreno como dono baldio, por esta altura os pés já estão encharcados e não faço a mínima intenção de me desviar das poças de água ou da que corre no carreiro que se foi carreirando por eu ali passar. As flores vergadas ao peso da chuva erguem-me o olhar e parecem agradecidas pelo facto de me preocupar em não as calcar. Por breves segundos questiono-me pelas formigas que ontem vi, atarefadas, a tratar da vida da rainha e, como leais e inconscientes súbditos, esquecendo-se delas próprias.
Chego a outro terreno onde a caruma flutua contente nas barragens que o terreno levemente inclinado permite. Afundo-me um pouco na terra e sorrio. O guarda-chuva está fechado.
Encosto a mão à casca de um pinheiro na parte onde está molhado, afago-o e cheiro-o. Este odor que se ouve inebria-me. Felizmente tudo se recolhe ou corre apressado de olhos no chão, fico eu e a chuva e o silêncio de me ouvir chover também. Com o guarda-chuva pendurado num ramo firme e baixo, abraço o pinheiro, sujo-me e molho-me ainda mais.
Fecho os olhos por momentos. Rio-me um pouco. Choro um pouco também. A chuva continua a cair, nada me separa do céu agora que a água me conduz as vontades ao etéreo e, por momentos, quando a eternidade parece querer adormecer, deixo-me silenciar o corpo e adormecer. Quase como se te estivesse a escrever.
Começou com as nuvens negras a ofuscarem a luminosidade da tarde, abrigado que estou do calor, do Sol e da vida durante os meses quentes, pareceu-me bom augúrio. Começo a olhar para o relógio e a forçar a passagem dos minutos, mas tudo tem o seu tempo, até o próprio tempo.
A tarde começa a cair triste e soturna, os grandes flocos cinzentos parecem empurrar os alvos para bem lá do Marão, onde mandarão os de bom coração. Aqui começam a surgir os mais escuros, um cinza azulado negro saboreado, a cor que lhes dou quando me prometem aguaceiros por meio dos bafientos dias de Verão. De repente o vento aparece a correr, abana as montras, assobia de excitação, empurra portas entreabertas (não queremos cá indecisões, “ou abertas ou fechadas!”, diz-me ele, apressado), sacode os cabelos dos transeuntes, fá-los apertar a parca e veraneada roupa ao corpo. Quando vai já longe, perdendo um pouco mais de tempo a enrodilhar uma bandeira desfraldada, ouço o ribombar da trovoada. Os meus pelos eriçam-se, não de medo ou instinto, não de invocação a uma sossegada Bárbara, mas de excitação, um quase poder saborear a tensão, o rasgar numa fisgada aguda e repentina o ar que me separa do nada e, depois, o estremecimento, o ofuscamento ainda e o sacudir de todas as células do meu corpo.
Assim fosse o silêncio. Repentino. Intimidador. Acompanhado do infinito.
- Se vais sair leva o carro, vais molhar-te! - Sou parco de audição no que concerne a conselhos que não quero seguir. Abro a janela da sala, ergo o estore, pouso as mãos no parapeito frio e já molhado, encosto a cabeça à chuva que cai e sorrio. De passo apressado, quem nunca se molhou corre sobre os paralelos já cobertos de água, o guarda-chuva encolhe-se sobre si mesmo, as varetas soluçam e tremem, enferrujadas pelo não uso, como a palavra e o amor. As caleiras engasgam-se no vómito de expelir o que do céu cai, a chuva cai apressada consciente da brevidade do momento de precipitação nesta estação e saio decido à rua.
Levo um pequeno guarda-chuva como medida de defesa da mesologia. Quero lá saber se chove? Aliás, quero saber que chove e no meio disto, quero a chuva em mim, de cima a baixo!
Entro no terreno como dono baldio, por esta altura os pés já estão encharcados e não faço a mínima intenção de me desviar das poças de água ou da que corre no carreiro que se foi carreirando por eu ali passar. As flores vergadas ao peso da chuva erguem-me o olhar e parecem agradecidas pelo facto de me preocupar em não as calcar. Por breves segundos questiono-me pelas formigas que ontem vi, atarefadas, a tratar da vida da rainha e, como leais e inconscientes súbditos, esquecendo-se delas próprias.
Chego a outro terreno onde a caruma flutua contente nas barragens que o terreno levemente inclinado permite. Afundo-me um pouco na terra e sorrio. O guarda-chuva está fechado.
Encosto a mão à casca de um pinheiro na parte onde está molhado, afago-o e cheiro-o. Este odor que se ouve inebria-me. Felizmente tudo se recolhe ou corre apressado de olhos no chão, fico eu e a chuva e o silêncio de me ouvir chover também. Com o guarda-chuva pendurado num ramo firme e baixo, abraço o pinheiro, sujo-me e molho-me ainda mais.
Fecho os olhos por momentos. Rio-me um pouco. Choro um pouco também. A chuva continua a cair, nada me separa do céu agora que a água me conduz as vontades ao etéreo e, por momentos, quando a eternidade parece querer adormecer, deixo-me silenciar o corpo e adormecer. Quase como se te estivesse a escrever.
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