Se um dia puder ser mãos, quero ser as tuas.

Crónica de Domingo, na Bird Magazine.

Não me pede. Fala. Eu é que peço para ir. É esta cumplicidade. O pouco diálogo. 
Cortar o silêncio com um comentário sobre futebol, uma nova teoria de conspiração ou o livro novo que estás a ler. É falar sobre tudo e sobre nada. O trabalho que dá fazer um parafuso. O mistério que é o Universo, o seu início, o seu fim, o nosso fim. Experimentar um novo troço de autoestrada para te ver como eu era em criança, maravilhado com algo novo. 
Ainda guardo um cubo de madeira, é a letra Z curiosamente, sobrou-me a última letra de todos os cubos que fizeste com todas as letras e com as quais aprendi, sozinho, a ler e a escrever ao copiar o que via escrito nos livros que lias na altura. É estar sentado no escuro, nos Invernos com trovoadas que levavam a electricidade, sob um cobertor cor-de-laranja, contigo a mostrar-me a magia, ao soprares e só passados uns segundos a vela oscilar.
Quando conduzo, é como se fosse ainda a olhar para ti, a segurar com as mãos um livro de banda desenhada e a imitar todos os teus movimentos no volante.
É entrar agora contigo no café, ser mais alto uns bons centímetros, dizerem-te "estão a chegar os Casagrande", ou tu sorrires e dizeres "atenção que hoje trago guarda-costas!". É ver-te sentado no sofá a dormir e eu apagar a televisão ou baixar o volume e tu responderes "eu estava a ver".
Ainda continuas maravilhado com ela, com a magia da vida, a acreditar na bondade das pessoas, a seres bom, ainda que nem o saibas que és.
Penso ainda, por vezes, condicionado por esta sociedade, que deveria ser riquíssimo, dar-te tudo o que me dás, mas vejo agora que não há riqueza maior que esta, de nos rirmos com as piadas que só nós conhecemos.
Ainda vou abraçado a ti, com os olhos fechados, a sentir o vento nas pernas e nas mãos, com o capacete a bambolear, sentado na traseira da barulhenta Java.
A certeza de sentir que aconteça o que acontecer, sempre nos teremos uns aos outros, a família, os verdadeiros amigos, enquanto houver pontes, grutas, erva, sol, noite, rios, enquanto houver um universo nada poderá existir que nos tire a liberdade de sermos quem somos, de nos rirmos quando mordemos uma extremidade de um cachorro especial, desses que se compra nas rulotes, e ver cair da outra extremidade um monte de batatas fritas ao mesmo tempo que fugimos com os pés para trás para não nos cair a maré de molhos que pedimos para colocar sobre aquela saborosa mixórdia. Se um dia eu puder ser mãos, quero ser as tuas.
E o mais fantástico é que nada é novo, é cíclico, já o tinha comigo antes de nascer, continuará comigo e apesar de não saber porque razão escrevo isto agora, faço-o. Porque sim. Porque estas coisas não se explicam e eu estou a aprender que nem preciso de escrever bem, de ser fiel às minhas memórias ou sonhos, porque na verdade e embora me entristeça, porque gostava de poder transmitir tudo aquilo que sinto, tudo já foi escrito, tudo já existe em cada um de nós, em cada uma das pessoas, porque somos felizes com nada e o Universo está cheio dele. Virá o dia em que não precisaremos escrever (e tudo o que se perde do que vem do etéreo para o cérebro e deste para as mãos) e aí sim, todos saberão o que é escrever com o olhar.
Até lá, vou perdendo o olhar em tudo o que me rodeia, na tentativa de, um dia, as minhas mãos serem um pouco a extensão do que Sou.

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