O céu

Crónica de Domingo, na Bird Magazine.

Quando o dia amanhece cinzento, por precaução sai à rua com uma boina cinzenta riscada, padronizada. Fá-lo apenas por reflexo, como se ainda reverberasse no espaço entre ele e a boca da esposa as palavras granizadas, quase sopro, de quem no leito de morte se preocupa cada vez mais com os vivos, especialmente com os que se amam há décadas, como por obrigação ou cuidado, não vá o descuido da idade passar em esquecimento e, assim, por pressão da vida, fazer esquecer a melhor parte de nós próprios.
- Olha que o Sol está lá na mesma, leva a boina! – era o que ouvia antes de sair, depois de lhe acomodar a almofada e dar uma carícia em forma de beijo, levemente, na testa. Depois colocava a chave debaixo do tapete da entrada, local combinado com as cuidadoras aladas do serviço de apoio domiciliário que, diariamente, lhe cuidavam da higiene e variavam a companhia. Era a estas que a mulher, de forma cada vez mais suspirada, agradecia o carinho e pedia que tomassem conta dele.
- Ele anda cá por andar, se não o lembrar de respirar nem isso faz por iniciativa própria!
Elas sorriam, ao mesmo tempo que a esponja molhada com cheiro a leite de coco e mel lhe humedecia um corpo seco, quase a ser colhido.
- Tomem-me conta dele.
Dia houve em que ao aconchegar a almofada a sentiu mais leve, a cabeça pendeu para o lado direito, os olhos não se abriram cansados e o braço, geralmente sobre o peito, escorregou por baixo do lençol e ficou suspenso. Confuso, o seu peito sacudiu e engasgou-se com o ar morno que a braseira aqueceu durante a noite.
Respirava sozinho pela primeira vez em muitos anos, tantos que já nem se lembrava. Saberia serem mais de meia centena, o anelar ostentava a recordação de um dia dourado. Ficou imóvel durante alguns minutos, depois pegou-lhe na mão e colocou-a com cuidado sobre o peito. Deixou-lhe a cabeça tal como estava, tirando apenas uma madeixa branca e enquanto o seu corpo arrefecia, foi à janela e ficou a olhar o céu.
- O senhor fica bem?
Foi a pergunta das cuidadoras quando já depois de chamados os bombeiros e a funerária, após os trâmites usuais, levantar o corpo.
- Não sei. Acho que sim.
Não usou mais a boina. Tenho-o visto à janela e envelhece a cada dia que passa, sessenta vezes por minuto.
Barbeia-se com o mesmo cuidado de sempre, mas pela cada vez mais flácida face é fácil que o gume da lâmina escanhoe nova ruga. Um pequeno fio de sangue escorre. No espelho embaciado parece-lhe vê-la, amada, esposa, a passar-lhe uma ponta da toalha molhada no corte e o sangue a estancar. Sorri inocente e embevecido, como se as mãos de quem já cá não está se permitissem galgar a distância infinitesimal que nos separa do corpo à alma. Ao ver novamente a cara no espelho, ainda lá está o corte, o fio de sangue que se deixa cair no lavatório e escorre, por entre espuma branca, até se deixar de ver.
Há um dia, porque no passado não se escreve de quem fala no futuro, em que se levanta da cama de forma ligeira, na respiração leve e instintiva vê que o ar se solta em finíssimos cordéis de prata e todas as partículas no ar se assemelham a dentes de leão que a vida soprou, só para si.
Virou-se e viu-se, ainda na cama, cabeça sobre o lado direito e uma feição sorridente, a mão aberta sobre o lado vazio da cama, o leito seco da vida de onde se colhem as noites sós. Sorriu. Via-se mal barbeado, despenteado. Esteve por ali vários minutos ou vários sei lá o que é que chamam ao tempo onde não existe tempo, até ver surgir, como uma figura esculpida em nevoeiro matinal pelas mãos de um artesão a quem não se vê a face, a mulher, em feições que só se vislumbram com os olhos que a terra não irá comer.
- Estava a ver que nunca mais vinhas.
Ela sorriu, passou-lhe a mão na face, o calor de se ser quem é.
- Estive a procurar umas pantufas quentes para ti. Sei que é o céu, mas nunca gostaste de andar descalço.

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