O caminho não é senão o que fazemos imóveis
Crónica, na Bird Magazine.
Nada atemoriza tanto, nem cativa de forma igual face a tudo o que encerra, que uma folha branca num caderno onde sonhei depositar sonhos.
Nada atemoriza tanto, nem cativa de forma igual face a tudo o que encerra, que uma folha branca num caderno onde sonhei depositar sonhos.
Não me parece existirem montes suficientes onde eu possa
desfrutar, na mão cheia de dias de vida que me restem, de um pôr-do-Sol
empoleirado numa rocha.
O colorido Sol que se aninha por trás de uma colina
adivinha um tolde cinzento salpicado por cinzas pequenas, trazidas pelo vento,
para que ao longe todos se apercebam da tragédia que são estas labaredas.
Talvez seja um desesperado acto de consciencialização, as árvores, flores, vegetação
e talvez até animais, que se deixam consumir em carvão e farrapos cinzentos, a
cinza que se respira, que se aloja no nosso corpo e se transforma ou reforma
dentro de nós, encostadas ao nosso âmago, aconchegando-se àquilo que nem nos lembramos
de possuir, um coração, para que possam sobreviver mais um pouco.
Acredito que sejam estas cinzas que choram quando o meu
corpo as leva, sem saber previamente, ao local onde elas próprias se
cinzelaram. Não queimaram ali, mas a cinza (ao contrário do ser humano, sente e
por isso sabe-o sem dar lugar a incertezas) vê no negrume do queimado as suas
próprias mãos, ramos e sonhos. Uma árvore é-o aqui como é num outro monte, não há
duas árvores, nem tão pouco uma floresta, uma árvore é a mesma árvore onde quer
que esteja e não será, parece-me, por nós não o sabermos ou acreditarmos, que
ela deixará de o ser e de sentir sua a perda de outras, assim o pensámos,
árvores. Temos tanto a aprender com elas…
Vamos aprendendo o que outros sabem, sem grande margem para
aprendermos o que nós próprios nos ensinamos, parece-me que corroborar algo
escrito se torna o caminho mais fácil quando o escrito está já
institucionalizado.
Percorremos as estradas que outros, a seu tempo, traçaram e,
convenhamos, bem o fizeram, mas não será este o tempo de nos cansarmos dos
mesmos caminhos e dar azo a que novos trilhos surjam, aqui e ali, primeiro como
indeléveis percursos de vegetação calcada, gravilha depositada, serpentados
atalhos daqui até ali, para darem origem a alamedas que, depois de abertas,
surgem tão óbvias que nos fazem indagar, como raio é que não vi isto antes?
Até aqui a vegetação, as árvores, nos prestam o seu legado
ao serem elas mesmas a dizer, vem por aqui, olha como me prostro, para que
vejas este caminho. Serão elas, brevemente, a dizerem, perguntarem, não estás
farto desse caminho? E a indicarem, a quem as quiser ler, que não sobram espaço
nos livros para os mesmos caminhos, que há necessidade de mais, ou menos, e à
medida que nos libertamos do peso daquilo que conhecemos vamos subindo,
descendo, em espiral até ao momento em que este corpo será forro para o caminho
que as árvores percorrerão e nós perderemos as dezenas de gramas que alguém
pensou serem o peso da alma, mas a alma não tem peso ou massa. Estas dezenas de
gramas são o correspondente às cinzas das árvores que nos fizeram caminho e
estavam, há muito, alojadas no nosso coração.
Dia virá, como o vento, como as pessoas que passam neste
trilho, em que saberemos o caminho para casa e as árvores não tenham a
necessidade e quase obrigação, como espécie mais inteligente, de se
sacrificarem e em cinza subirem connosco para que aprendamos: o caminho não é
senão o que fazemos imóveis.
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