Eu e tu, noite.

Crónica no Correio do Porto.

Pouso a saudade no cimento frio. Nestas noites, até de mim rio. Deixo-me a olhar o céu, a claridade do dia a desaparecer, sombras de um sol já a esmaecer, as estrelas começam timidamente a cintilar, parecem mais envergonhadas do que eu, ganham força contra o próprio céu e, de este para oeste, de oeste para este meu mundo, formam as constelações que eu quero. Fazia-me já falta, o deitar no chão, o calor da terra como cama, o frio que se desprende até à madrugada. Eu e tu, noite. Eu e tu.
Sibilantes correntes telúricas impelem-me a içar parte de mim, sou já folha de livro por ler, a esvoaçar, sem já me ter. Saio leve e sem prisão, sem fulgor ou religião, ascendo sem o saber, apenas puxado pelos sorrisos e aromas que mora em cada uma das estrelas. Sem lei, apenas uma, bem sei, gravada num olhar fechado sem cor, Amor.
Olho para trás, já só eu no chão jaz, passo para o lado de lá da noite e espreito por cada uma das estrelas para este pequeno mundo (que percorro feliz e vagabundo), quão pequenos, insignificantes, raros e preciosos, quão sobejamente subjugados por meia dúzia de perniciosos. Espreito por outra estrela, e por outra e mais outra! E tantos mundos e galáxias, estrelas e pulsares, tantos sonhos iluminados, tantas mãos para Amares... Rio-me da cadência das estrelas, do rasgar dos céus em sinfonia caótica, tudo tem ritmo próprio e propriedade sinfónica, tudo cintila em reverência, tudo tenho eu, até a presença da tua ausência.
Daqui, nunca as distâncias profundas que separam os quotidianos pareceram tão infames e ínfimas... De página em página folheio-me de regresso, caindo, amparado pelas invisíveis mãos de outros nomes já não proferidos, até por fim o calor do chão já frio me fazer sentir carne, ínfimo, infame.
Abro os olhos.
Sou maior que os meus sonhos.
Consagro-me ao silêncio, não fosse esta timidez de existir, dir-te-ia que tens bem perto no céu, uma estrela por ti a sorrir.

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