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A mostrar mensagens de outubro, 2016

Ausente sente

Crónica de domingo na  Bird Magazine , em 30/10/2016. Arredo-me das letras como de mim.  Deixo-as desencavadas e encostadas na leira, ao frio e à chuva que tem caído lá fora e cá dentro.  A sementeira não se faz pela noite e, contudo, é nela que encontro terreno fértil para, como bicho, me aninhar em mim ao chegar ao ninho, ombreando força com as sombras ondulantes e erráticas que a vela projecta na sua dança sobre o pavio.  Já nem sei do que me rio.  Descansa o resto do pão ao meu lado e nesta côdea amarelada dou por mim fortuna de áureos nunca tidos, que não me pesam, e, talvez assim, por isso, por mim, me sinto afortunado. Saga de quem se abriga num qualquer beirado. O dia passa a cavalgar por mim, literalmente, graciosamente e cavalarmente, adverbiando as palavras para que possa saltar os obstáculos que se ausentam e, como tal, não se vislumbram ou percebem.  Um pouco como eu. O frio começa a sorrir, vem subindo as pernas da cadeira, torneando ...
Aguardo-me vindo vivo do restolho que o verso colheu porque brota das mãos o regadio nalguém talvez eu .

Balada da voz lengalengada

Crónica na Bird Magazine em 23/10/2016. Os gatos, pequenitos, enrolam-se uns aos outros no meio da erva verde, enquanto os mais afoitos cedem ao medo do desconhecido ronronar deste animal grande, negro, que segue de motor enfurecido com os pneus a baterem furiosamente nos paralelos cinzentos, e se esgueiram de encontro aos irmãos que semicerram o olhar felino, inocente, como o acordar matutino da mente. De repente a própria erva parece, além de húmida e fumegante pelos raios inclinados do finado Verão, parda e salpicada com tons de branco, laranja, castanho, preto, pantufas dobradas sobre o corpo, bigodes, pequenos narizes cor-de-rosa e olhos esbugalhados de espanto. A erva, essa, não se assusta nem quando apelidada de daninha e, assim, ao corpo arrancada, segue compenetrada, em foto-síntese atenta no namoro pendular entre o que se inspira e expira. As casas, velhas, são vistas do alto como se pendessem sempre sobre uma encosta invisível, mas tangível, como o são todos os esqueciment...
Nos alísios madrugadores onde vento os socalcos aram-se a eles próprios, a mão pende sobre o sentimento e os sons do dia cultivam-se sem que o mar se agite. A páginas tantas desfolho-me sem capítulo por entre os pinheiros, as florestas em torno do pensamento talham-me os passos braseiros, sigo afogueado encapelado emaranhado no adimensionado, afogado. Quando ausculto a ausência do som os regatos escoam-se abaixo do meu horizonte e eu próprio sou inerte, húmus, de regresso ao ventre, à fonte. A terra cultiva-me as mãos, na aridez o plantio da eira onde secam o grão que afago e, germinando, serenamente naufrago.
Cuida desta estreita faixa onde guio o sonho à deriva, a vida é fogo que se aviva no crepúsculo da brasa como os dias protegidos de mim, debaixo da asa. E se voas, ainda que amarre em mim, creia-te o destino alado a bordo de umas cores inodoras, aquelas que não sei pintar. Algures a distância é um arfar e o solo saturado de chuva traz regadio bastante a viver. Não o nego, apenas não o vejo florido porque o Outono que sou é cego.

Cãesjos

Crónica de 16/10/2016 na Bird Magazine . Os braços arderam, secou-se a seiva que pendia dos dedos de quem nasce verde e morre cinzento, inglório. A cinza agrilhoa-se aos olhos, não há urgência que se torne neblina, apenas se calam os murmúrios e os chilreados trinidos de quem vive num sopro. Os estrepes forçados de umas quantas armações de vida sobram de uma noite que se faz dia, de um nascer forçado do Sol embraseado que outros chamam Lua. Os meus pés afundam-se no escuro, os passos que não dei deixaram pegadas à frente da minha sombra, porque, simplesmente, o horizonte que se estendia tombou e desistiu de ser verde. Há uma sombra negra na estrada que obriga a longa e desajeitada fila dominical de condutores e suas extensões motoras serpentear. Um cão jaz na beira da estrada. Grande. Negro. Fusco. A cabeça encostada a um pequeno e inclinado bloco de betão, como se dormisse. Amedrontado, confuso, pensando o que os cães pensam, um outro, do lado de lá do bloco, fita-o, com as pa...

Isto é apenas o vento

Crónica na Bird Magazine em 09/10/2016 À semelhança do climatérico dia, acordo sem saber muito bem onde estou, ao que vim, para onde vou e porque me escrevo na primeira pessoa, que me encontra. Apetece-me deixar dormente o despertar, ver os restos de noite fugirem das frestas luminosas que assomam por entre os buracos da persiana, tapar-me com o lençol até ao queixo, como se estivesse sobre a caruma do monte a dois passos donde estou e tivesse medo do cair do dia. Consigo levantar-me, a custo, a muito custo. Espera-me a tarefa de nebular a manhã e anima-me, pelo menos por enquanto, a volatilidade da mediocridade que promete terminar quando todos se vestirem de lírios.  Pouso a caneca negra na banca, deixei a flutuar o resto da espuma branca já fria da maré que tomei quente e, agora a custo, cinjo o cinto, abotoo o pano velho ao corpo, enfio os pés nos largos sapatos frios e preparo-me para sair de casa.  Coloco um pé na soleira, a porta rangeu menos hoje, olho para trás...

As ilhas morrem de pé

Crónica de Domingo, na Bird Magazine em 02/10/2016 “As ilhas morrem de pé” Sento-me no banco de madeira, corrido, dos bons, em que o meu peso colocado num extremo não alavanca a outra extremidade para o ar, fazendo dele um baloiço em que a única criança sou eu. Há um quê de escutismo na construção, umas mãos habilidosas ou ávidas de o serem procuraram entrelaçar cordas, pregos e madeira, nalgo a que comparo com uma tenda de índio ou, apesar da imperfeição, das minhas antigas cabanas construídas à força de inocência e de muitos ramos de mimosas, fetos e, perdoe-nos o proprietário, algumas molhadas de palha seca. Escolho este banco porque, a esta hora, é o único onde a sobra projectada pelos ramos dos sobreiros descansa do calor que assola na invulgar quente tarde de um Outono que, por este ritmo, só chegará na Primavera. Pouso os antebraços na mesa, tento perceber de que madeira se trata, mas falta-me o olhar resinoso que conhece os veios (parabéns Pai). Gosto do atrito, o caderno ...