Pingos de mel
Crónica de Domingo na Bird Magazine.
O Sol ainda que não vá a pique, mesmo na diagonal queima como não se lembra de o sentir ou talvez o sentisse antes, mas as memórias não parecem caber em quem vive do lado de fora do tempo e, por isso, não se apresentem sobrepostas como as camadas de pó indistinto que camuflam alguma da mobília. Tarda Agosto em fugir, Setembro impaciente promete calor no ventre e o Verão que se esvai apenas nas férias da canalhada, ávida dos mostruários das mercearias, mercados, minimercados e supermercados.
Detém-se sob o beiral, mira as traves de carvalho velho, oxidado, percorre os veios com o olhar e detém-se nos nódulos negros como se todo e qualquer aglomerado de vida seivada se detivesse naqueles círculos irregulares e o chamasse de volta a ser tronco. Sem que deixasse de chover este calor abafado, com nuvens negras altas prenhes de fumo, desprende o olhar da madeira, avalia a integridade das telhas vermelhas algo fendidas, mas sem que isso (ou, na verdade, nada) o preocupasse verdadeiramente.
Deitou a perna direita à frente, depois a outra e quando deu por si estava já a andar, percorrendo o caminho empedrado até ao pouco de verde onde semeava e plantava e, no percurso, se entretinha a ver crescer tomates, grandes e pequenos, alfaces, couves, batata, abóboras, vagens, ervilhas, curgetes, pepinos, cebolas e outras miudezas. Deu duas talhadelas num rego, desviou a água para os plantios desejados, colheu aqui e ali o que de maduro lhe pareceu e ainda piscou o olho à figueira que arfava sob o Agosto, sequiosa, para depois, mais talhadela, menos talhadela, fazer lá chegar a água corrente que espiralava até encher a pequena cratera de terra negra e a tornar mais negra com o salpicado negrume das gotas de suor. Com o calcanhar improvisa um rego, a água irrompe na brutalidade selvagem da frescura líquida e vai-se fazendo levada até ficar um pequeno espelho de água onde caem umas faúlhas.
Ri-se. Quase sem querer. Olhou em redor, ninguém o viu, mantem o semblante, calça a soca, verga-se para apanhar a enxada e vai desentalhar a barragem improvisada. Coloca-a na nascente do pequeno afluente artificial que vai maneando à sua maneira endeusada, este vai-se evaporando e sumindo pela sôfrega terra que, de fausta, prepara-se para matar a sede a tubérculos e raízes que, agradecidas como só as plantas, levarão caule, folhas, nervuras acima, os nutrientes com que banquetearão primeiro a bicharada da terra, depois a do ar, incluindo arejo, aves grandes e pequenas e apenas depois, caso a ratice não lhe chegue, o homem. Deus quando dá é para todos! Riu-se, outra vez.
As talhadeiras encolhem-se, também elas com a leveza do trabalho bem feito, e ficam prostradas a um canto, há-de alguém passar por ali perto, vê-las e não pegá-las apenas porque não lhes pertence. Fitarão o despreparo da sementeira, a geometria desregrada de um campo plantado sem lei, o descuido com as pragas, bichezas, ratices e pardalada. Comentarão e rir-se-ão de quem não se sabe promover, ao menos para encher duas caixas e colocar ali atrás do portão, com um letreiro que diga mais por vaidade que qualidade, “vende-se legumes”.
O prazo de se colher passará, a figueira, orgulhosa, encher-se-á de folhas, figos barrigudos e outros esventrados pela passarada, todos comerão, até o raio do gaio que os bica até meio e depois leva um inteiro sabe lá o deus dos pássaros (que deverá ser o dos homens também) para onde. A fruta come-se da árvore ou, quando muito, em casa e no mesmo dia da colheita, que se quer madura sim, mas ainda pulsante de seiva, como se a árvore arrancasse das suas penas e nos desse de comer, não porque sejamos senhores dela, mas pela gratidão do regadio. Ainda há quem pense que o homem é um baldio. Enfim.
Feita a lavoura, assim lhe chamemos o acto de amar a terra, toda a Terra, vai deter-se sob o beiral. Talvez um dia ali faça um alpendre. Encosta a enxada ao peito e com as ásperas mãos vai empurrar o portão, verde antes, ocre agora, cor de ferrugem e de tempo sobre ferro, onde não se detém a vida porque ali não se ouvem os tiques ou os taques, não há notícias nem das dos almanaques, há apenas um dia a seguir ao outro desde que o infinito se lembra de ser eternidade.
- Já vieste?
Sem responder aproxima-se no passo calmo de quem mede os dias em centímetros e sulca rios sem que os prenda, a mesma mão gretada no bolso das calças sujas tira um barrigudo figo, passa-o por água na torneira improvisada que é a rolha no tubo de plástico e, com a mão no cabelo dela, dá-o a saborear.
- Hum, que bom! – responde-lhe com o sorriso doce de um pingo de mel. – Ficou lá que chegue para outros?
- Sim Vida.
O Sol ainda que não vá a pique, mesmo na diagonal queima como não se lembra de o sentir ou talvez o sentisse antes, mas as memórias não parecem caber em quem vive do lado de fora do tempo e, por isso, não se apresentem sobrepostas como as camadas de pó indistinto que camuflam alguma da mobília. Tarda Agosto em fugir, Setembro impaciente promete calor no ventre e o Verão que se esvai apenas nas férias da canalhada, ávida dos mostruários das mercearias, mercados, minimercados e supermercados.
Detém-se sob o beiral, mira as traves de carvalho velho, oxidado, percorre os veios com o olhar e detém-se nos nódulos negros como se todo e qualquer aglomerado de vida seivada se detivesse naqueles círculos irregulares e o chamasse de volta a ser tronco. Sem que deixasse de chover este calor abafado, com nuvens negras altas prenhes de fumo, desprende o olhar da madeira, avalia a integridade das telhas vermelhas algo fendidas, mas sem que isso (ou, na verdade, nada) o preocupasse verdadeiramente.
Deitou a perna direita à frente, depois a outra e quando deu por si estava já a andar, percorrendo o caminho empedrado até ao pouco de verde onde semeava e plantava e, no percurso, se entretinha a ver crescer tomates, grandes e pequenos, alfaces, couves, batata, abóboras, vagens, ervilhas, curgetes, pepinos, cebolas e outras miudezas. Deu duas talhadelas num rego, desviou a água para os plantios desejados, colheu aqui e ali o que de maduro lhe pareceu e ainda piscou o olho à figueira que arfava sob o Agosto, sequiosa, para depois, mais talhadela, menos talhadela, fazer lá chegar a água corrente que espiralava até encher a pequena cratera de terra negra e a tornar mais negra com o salpicado negrume das gotas de suor. Com o calcanhar improvisa um rego, a água irrompe na brutalidade selvagem da frescura líquida e vai-se fazendo levada até ficar um pequeno espelho de água onde caem umas faúlhas.
Ri-se. Quase sem querer. Olhou em redor, ninguém o viu, mantem o semblante, calça a soca, verga-se para apanhar a enxada e vai desentalhar a barragem improvisada. Coloca-a na nascente do pequeno afluente artificial que vai maneando à sua maneira endeusada, este vai-se evaporando e sumindo pela sôfrega terra que, de fausta, prepara-se para matar a sede a tubérculos e raízes que, agradecidas como só as plantas, levarão caule, folhas, nervuras acima, os nutrientes com que banquetearão primeiro a bicharada da terra, depois a do ar, incluindo arejo, aves grandes e pequenas e apenas depois, caso a ratice não lhe chegue, o homem. Deus quando dá é para todos! Riu-se, outra vez.
As talhadeiras encolhem-se, também elas com a leveza do trabalho bem feito, e ficam prostradas a um canto, há-de alguém passar por ali perto, vê-las e não pegá-las apenas porque não lhes pertence. Fitarão o despreparo da sementeira, a geometria desregrada de um campo plantado sem lei, o descuido com as pragas, bichezas, ratices e pardalada. Comentarão e rir-se-ão de quem não se sabe promover, ao menos para encher duas caixas e colocar ali atrás do portão, com um letreiro que diga mais por vaidade que qualidade, “vende-se legumes”.
O prazo de se colher passará, a figueira, orgulhosa, encher-se-á de folhas, figos barrigudos e outros esventrados pela passarada, todos comerão, até o raio do gaio que os bica até meio e depois leva um inteiro sabe lá o deus dos pássaros (que deverá ser o dos homens também) para onde. A fruta come-se da árvore ou, quando muito, em casa e no mesmo dia da colheita, que se quer madura sim, mas ainda pulsante de seiva, como se a árvore arrancasse das suas penas e nos desse de comer, não porque sejamos senhores dela, mas pela gratidão do regadio. Ainda há quem pense que o homem é um baldio. Enfim.
Feita a lavoura, assim lhe chamemos o acto de amar a terra, toda a Terra, vai deter-se sob o beiral. Talvez um dia ali faça um alpendre. Encosta a enxada ao peito e com as ásperas mãos vai empurrar o portão, verde antes, ocre agora, cor de ferrugem e de tempo sobre ferro, onde não se detém a vida porque ali não se ouvem os tiques ou os taques, não há notícias nem das dos almanaques, há apenas um dia a seguir ao outro desde que o infinito se lembra de ser eternidade.
- Já vieste?
Sem responder aproxima-se no passo calmo de quem mede os dias em centímetros e sulca rios sem que os prenda, a mesma mão gretada no bolso das calças sujas tira um barrigudo figo, passa-o por água na torneira improvisada que é a rolha no tubo de plástico e, com a mão no cabelo dela, dá-o a saborear.
- Hum, que bom! – responde-lhe com o sorriso doce de um pingo de mel. – Ficou lá que chegue para outros?
- Sim Vida.
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