Palavras manuais, abraços artesanais
in Bird Magazine em 18/09/2016.
“Palavras manuais, abraços artesanais”
Quando lhe perguntaram se tinha trazido lâmpadas apercebeu-se que, de facto, deveria ter lido melhor as instruções da feira de artesanato. Sorriu e perguntou onde as poderia comprar, não as queria trazer no carro, disse-lhes, tinha medo que se partissem na viagem, mentiu. Perguntaram se queria ajuda para descarregar, mas o seu encolher de ombros, o olhar para o pequeno veículo ligeiro sem bagageira para veleidades artísticas volumosas e a espécie de esgar envergonhado que lhe fez erguer apenas um canto dos lábios deram a entender que não só estavam na presença de um artesão atípico, como lhes fez crescer a curiosidade em ver, na manhã seguinte, o que estaria exposto para venda no stand C-4-D, (C de cubículo, quatro de área em metros quadrados, aproximadamente e D de tipologia, sem esquina, sem lona a improvisar alpendre, dois casquilhos a bailar no rodopio do fio eléctrico), onde estavam já coladas as letras em vinil, pretas, que ordenadas apresentavam “Palavras Manuais, Abraços Artesanais”.
Assinou uns papéis, os mesmos que tinha enviado por email, impressos, assinados, digitalizados e recebeu um recibo, uma espécie de declaração em como tinha feito o pagamento da inscrição e uns termos de responsabilidade que, como responsável que era, não leu.
Deixaram-no ali, noite tarde. A lua exibia orgulhosa uma tonalidade laranja e trajava uma espécie de neblina que, sedutora, deixava transparecer as suas formas redondas. Todos os outros stands estavam fechados e vazios de gente. Ao fundo da rua comungavam uma espécie de cumplicidade artesã entre ofícios diferentes, pouco azo havia a conversas sobre a mesma arte. Ficavam ali num burburinho, caminhando lentamente para o final do recinto e em direção às pensões onde se hospedariam, as faces iluminadas por música celta, fogos farruscos a crepitar das bocas de saltimbancos, vendedores de algodão doce desenquadrados na temática teciam nuvens coloridas e saborosas que se colavam à cara dos putos e permaneciam nos dedos mesmo depois de lambuzados repetidas vezes. Todos davam à língua, literalmente.
Deixou-se estar encostado ao carro, o calor da carroçaria, ainda quente, contrastava com os braços desnudos frios de noite a prometer orvalhar. Abanou as chaves do carro e de casa no bolso e tentou guardar a chave do stand, mas o quadrilátero de madeira onde estava gravado (ou seria pirografado?) era grande de mais, tal como era grande de mais a lua que iluminava esta parte do recinto mais afastado da feira. Decidiu que via bem e, para noite, sonhos conseguem ver melhor sem grandes luminescências. Entrou no stand ainda aberto para experimentar a chave por dentro, tudo funcionava, bem empregue a inscrição. Desloca-se ao carro, tira a mochila, fecha o carro que lhe parece piscar os olhos alaranjados (a imaginação será artesanal?), sobe o degrau do stand, aperta as laterais da lona às paredes frágeis do stand numa espécie de acasacar uma vestimenta e sente-se bem, como se fechasse sobre si um casaco de lã comprido de mais, como os que nos cobrem os pulsos e onde fechamos as mãos em punho prendendo as bordas das mangas. Estas noites seriam assim, dormiria por dentro das palavras manuais, embrulhado em si e no sonho.
No outro dia, que amanhecera torto sobre a sua verticalidade e que agora tentava endireitar com alongamentos torpes, desabotoou a lona dobrando-a num rolo, prendendo o cilindro plastificado no topo do stand imediatamente abaixo do nome, fazendo com que os casquilhos oscilassem em demasia, sem o peso das lâmpadas.
Estava nu, o stand, um pouco como ele. Haviam alguns cadernos de capa preta, sebentas de folhas finas e leves de mais, como percebeu quando as colocou desamparadas sobre o pano preto, tendo que as prender com pequenas pedras que estavam soltas na calçada. Não havia um preçário, um mostruário, peças soltas e uniformes na sua disformidade, nada pendurado nas paredes, nenhuma caixa com cartões de visita ou símbolos de redes sociais onde apregoar a arte. Eram os cadernos, o banco rosca de três pernas, canetas cristalizadas azuis e pretas e lápis amarelos e negros, com pontas vermelhas e uma ou duas afias de metal. O porta-lápis de ganga parecia prenhe, por isso era provável que por lá estivessem outros instrumentos de escrita.
Pela localização não favorável só lá passavam os distraídos ou quem lá ia realmente à procura de artesanato. O primeiro foi um incauti, viu que chegara à ponta da feira, levanta os olhos do ecrã do telemóvel inteligente, olha para ele, vê a montra, levanta a cabeça para o nome do stand e ri-se. Creio até que tirou uma fotografia mais à frente (pelo barulho do obturador) para mostrar aos amigos virtuais. As pessoas foram-se sucedendo, sem nada na montra não havia curiosidade.
Uma senhora traz um bebé ao colo e um puto em idade de primária escolaridade.
A mulher trajava tecido sobre tecido, num misto de cores e padrões que faziam lembrar índios norte americanos. Reparou nos olhares dos artesãos e algumas pessoas e ainda que não quisesse ouvir, escutou, alguém lamentava a sorte das crianças, que mulher solteira, nova e bonita, adoptaria filhos sem ter pai que os cuide?
O maior pergunta-lhe em cada stand o que está escrito quando não consegue juntar as sílabas, a mãe sorri e lê os nomes, ora dos artesãos, ora da abstraticidade dos mesmos.
- Ó mãe, e este?
- Palavras manuais, abraços artesanais. - respondeu ao filho, detendo-se a pensar no curioso nome e inusitada montra de nada a vender.
- Dás-me uma palavra? - pergunta-lhe o catraio, olhando-a lá do fundo com o inocente sorriso. O pequeno ao colo deu um surpiro e permaneceu no sono em que vinha.
A senhora olhou para ele, sorriu, olhou para o filho, sorriu.
- Bom dia. Desculpe. (a voz não era estranha) Que palavras vende? - a pergunta podia ter sido apenas um sorriso, ou um olhar, ou a forma como o liso cabelo negro lhe caía pela face e ela no malabarismo de dar a mão a um filho, segurar o outro ao colo, ainda conseguiu abanar a cabeça para que os finos fios negros de cabelo oscilassem e se depositassem sobre os outros, presos por momentos.
- Vendo todas. Mas para o pequeno é de graça. Em que papel queres? - e espalhou a mão num gesto que cobriu os cadernos dispostos na mesa e as sebentas, ainda debaixo das pequenas pedras.
O puto aponta para uma sebenta. Rasga uma folha, alisa as rugas laterais, senta o puto no colo, olha-o nos olhos e em quatro versos (Tens-te aí aos milhares/ Dias em que vida a teus pés cai/ O segredo que te sorri/ Quem sabe a palavra pudesse ser teu pai) manuscritos a tinta azul, deixa as pontas do fio de ariadne de regresso à casa que viu dentro do pequeno.
A mulher insiste em pagar, estende-lhe a mão fechada com algumas moedas, mas ele recusa com um educado e delicado toque na mão e, aí, no alcance de uma pele sobre outra, a distância encurtou-se numas palavras, “desculpe”, e um olhar envergonhado, embaraçado e enrubescido, ergueu-se naquela manhã.
Houve diálogo, mas as palavras encarregaram-se de abraçar o silêncio. Havia também história, mas novamente as palavras insistiram em escrever apenas aquilo que de inusitado poderia ser narrado. O dia passou-se sem que a mulher e os pequenos (o que era mesmo pequeno pequenino pequeninito ficou a dormitar na manta que tinha servido de colchão na noite anterior) saíssem do stand. O menos petiz ainda ia à rua e apregoava o nome do stand como quem chama a clientela para a entrada do bazar e a mulher, mãe, a quem sob a pele reluziam hieróglifos sorria atenta ao desenrolar do dia.
Venderam-se versos, deram-se palavras, tudo porque o preço era aquilo que a pessoa escrita lhe quisesse dar e também se trocaram vozes de escárnio e gente houve que foi embora sem palavra, tudo porque nada havia a relatar sobre o vazio que as ocupava na totalidade o interior. Outras, ainda, foram sem que o pagamento fosse aceite, bastou a troca de olhares para se fazer riqueza no interior de cada um.
- Quer que embrulhe? - perguntava às pessoas, invariavelmente atónitas pela situação, pelo escrito, pelo lido e, também, o que é que havia a embrulhar? e quando lhe respondiam que sim ele levantava-se e dava-lhes um abraço apertado, as folhas no peito entre escrito e escritor, a cabeça pousada por momentos no ombro. Palavras manuais, com abraços artesanais.
“Palavras manuais, abraços artesanais”
Quando lhe perguntaram se tinha trazido lâmpadas apercebeu-se que, de facto, deveria ter lido melhor as instruções da feira de artesanato. Sorriu e perguntou onde as poderia comprar, não as queria trazer no carro, disse-lhes, tinha medo que se partissem na viagem, mentiu. Perguntaram se queria ajuda para descarregar, mas o seu encolher de ombros, o olhar para o pequeno veículo ligeiro sem bagageira para veleidades artísticas volumosas e a espécie de esgar envergonhado que lhe fez erguer apenas um canto dos lábios deram a entender que não só estavam na presença de um artesão atípico, como lhes fez crescer a curiosidade em ver, na manhã seguinte, o que estaria exposto para venda no stand C-4-D, (C de cubículo, quatro de área em metros quadrados, aproximadamente e D de tipologia, sem esquina, sem lona a improvisar alpendre, dois casquilhos a bailar no rodopio do fio eléctrico), onde estavam já coladas as letras em vinil, pretas, que ordenadas apresentavam “Palavras Manuais, Abraços Artesanais”.
Assinou uns papéis, os mesmos que tinha enviado por email, impressos, assinados, digitalizados e recebeu um recibo, uma espécie de declaração em como tinha feito o pagamento da inscrição e uns termos de responsabilidade que, como responsável que era, não leu.
Deixaram-no ali, noite tarde. A lua exibia orgulhosa uma tonalidade laranja e trajava uma espécie de neblina que, sedutora, deixava transparecer as suas formas redondas. Todos os outros stands estavam fechados e vazios de gente. Ao fundo da rua comungavam uma espécie de cumplicidade artesã entre ofícios diferentes, pouco azo havia a conversas sobre a mesma arte. Ficavam ali num burburinho, caminhando lentamente para o final do recinto e em direção às pensões onde se hospedariam, as faces iluminadas por música celta, fogos farruscos a crepitar das bocas de saltimbancos, vendedores de algodão doce desenquadrados na temática teciam nuvens coloridas e saborosas que se colavam à cara dos putos e permaneciam nos dedos mesmo depois de lambuzados repetidas vezes. Todos davam à língua, literalmente.
Deixou-se estar encostado ao carro, o calor da carroçaria, ainda quente, contrastava com os braços desnudos frios de noite a prometer orvalhar. Abanou as chaves do carro e de casa no bolso e tentou guardar a chave do stand, mas o quadrilátero de madeira onde estava gravado (ou seria pirografado?) era grande de mais, tal como era grande de mais a lua que iluminava esta parte do recinto mais afastado da feira. Decidiu que via bem e, para noite, sonhos conseguem ver melhor sem grandes luminescências. Entrou no stand ainda aberto para experimentar a chave por dentro, tudo funcionava, bem empregue a inscrição. Desloca-se ao carro, tira a mochila, fecha o carro que lhe parece piscar os olhos alaranjados (a imaginação será artesanal?), sobe o degrau do stand, aperta as laterais da lona às paredes frágeis do stand numa espécie de acasacar uma vestimenta e sente-se bem, como se fechasse sobre si um casaco de lã comprido de mais, como os que nos cobrem os pulsos e onde fechamos as mãos em punho prendendo as bordas das mangas. Estas noites seriam assim, dormiria por dentro das palavras manuais, embrulhado em si e no sonho.
No outro dia, que amanhecera torto sobre a sua verticalidade e que agora tentava endireitar com alongamentos torpes, desabotoou a lona dobrando-a num rolo, prendendo o cilindro plastificado no topo do stand imediatamente abaixo do nome, fazendo com que os casquilhos oscilassem em demasia, sem o peso das lâmpadas.
Estava nu, o stand, um pouco como ele. Haviam alguns cadernos de capa preta, sebentas de folhas finas e leves de mais, como percebeu quando as colocou desamparadas sobre o pano preto, tendo que as prender com pequenas pedras que estavam soltas na calçada. Não havia um preçário, um mostruário, peças soltas e uniformes na sua disformidade, nada pendurado nas paredes, nenhuma caixa com cartões de visita ou símbolos de redes sociais onde apregoar a arte. Eram os cadernos, o banco rosca de três pernas, canetas cristalizadas azuis e pretas e lápis amarelos e negros, com pontas vermelhas e uma ou duas afias de metal. O porta-lápis de ganga parecia prenhe, por isso era provável que por lá estivessem outros instrumentos de escrita.
Pela localização não favorável só lá passavam os distraídos ou quem lá ia realmente à procura de artesanato. O primeiro foi um incauti, viu que chegara à ponta da feira, levanta os olhos do ecrã do telemóvel inteligente, olha para ele, vê a montra, levanta a cabeça para o nome do stand e ri-se. Creio até que tirou uma fotografia mais à frente (pelo barulho do obturador) para mostrar aos amigos virtuais. As pessoas foram-se sucedendo, sem nada na montra não havia curiosidade.
Uma senhora traz um bebé ao colo e um puto em idade de primária escolaridade.
A mulher trajava tecido sobre tecido, num misto de cores e padrões que faziam lembrar índios norte americanos. Reparou nos olhares dos artesãos e algumas pessoas e ainda que não quisesse ouvir, escutou, alguém lamentava a sorte das crianças, que mulher solteira, nova e bonita, adoptaria filhos sem ter pai que os cuide?
O maior pergunta-lhe em cada stand o que está escrito quando não consegue juntar as sílabas, a mãe sorri e lê os nomes, ora dos artesãos, ora da abstraticidade dos mesmos.
- Ó mãe, e este?
- Palavras manuais, abraços artesanais. - respondeu ao filho, detendo-se a pensar no curioso nome e inusitada montra de nada a vender.
- Dás-me uma palavra? - pergunta-lhe o catraio, olhando-a lá do fundo com o inocente sorriso. O pequeno ao colo deu um surpiro e permaneceu no sono em que vinha.
A senhora olhou para ele, sorriu, olhou para o filho, sorriu.
- Bom dia. Desculpe. (a voz não era estranha) Que palavras vende? - a pergunta podia ter sido apenas um sorriso, ou um olhar, ou a forma como o liso cabelo negro lhe caía pela face e ela no malabarismo de dar a mão a um filho, segurar o outro ao colo, ainda conseguiu abanar a cabeça para que os finos fios negros de cabelo oscilassem e se depositassem sobre os outros, presos por momentos.
- Vendo todas. Mas para o pequeno é de graça. Em que papel queres? - e espalhou a mão num gesto que cobriu os cadernos dispostos na mesa e as sebentas, ainda debaixo das pequenas pedras.
O puto aponta para uma sebenta. Rasga uma folha, alisa as rugas laterais, senta o puto no colo, olha-o nos olhos e em quatro versos (Tens-te aí aos milhares/ Dias em que vida a teus pés cai/ O segredo que te sorri/ Quem sabe a palavra pudesse ser teu pai) manuscritos a tinta azul, deixa as pontas do fio de ariadne de regresso à casa que viu dentro do pequeno.
A mulher insiste em pagar, estende-lhe a mão fechada com algumas moedas, mas ele recusa com um educado e delicado toque na mão e, aí, no alcance de uma pele sobre outra, a distância encurtou-se numas palavras, “desculpe”, e um olhar envergonhado, embaraçado e enrubescido, ergueu-se naquela manhã.
Houve diálogo, mas as palavras encarregaram-se de abraçar o silêncio. Havia também história, mas novamente as palavras insistiram em escrever apenas aquilo que de inusitado poderia ser narrado. O dia passou-se sem que a mulher e os pequenos (o que era mesmo pequeno pequenino pequeninito ficou a dormitar na manta que tinha servido de colchão na noite anterior) saíssem do stand. O menos petiz ainda ia à rua e apregoava o nome do stand como quem chama a clientela para a entrada do bazar e a mulher, mãe, a quem sob a pele reluziam hieróglifos sorria atenta ao desenrolar do dia.
Venderam-se versos, deram-se palavras, tudo porque o preço era aquilo que a pessoa escrita lhe quisesse dar e também se trocaram vozes de escárnio e gente houve que foi embora sem palavra, tudo porque nada havia a relatar sobre o vazio que as ocupava na totalidade o interior. Outras, ainda, foram sem que o pagamento fosse aceite, bastou a troca de olhares para se fazer riqueza no interior de cada um.
- Quer que embrulhe? - perguntava às pessoas, invariavelmente atónitas pela situação, pelo escrito, pelo lido e, também, o que é que havia a embrulhar? e quando lhe respondiam que sim ele levantava-se e dava-lhes um abraço apertado, as folhas no peito entre escrito e escritor, a cabeça pousada por momentos no ombro. Palavras manuais, com abraços artesanais.
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