António
in Correio do Porto, em 29/09/2016
COM o calor saem da toca os suores, que se deixam cair embalados pela gravidade e pelo ondular do andar torpe daquela forma de gente a quem chamam António.
Aqui o nome é substituído pela realidade, de maneira a não se confundir com a ficção.
Cruza-se António comigo, o calor não deixa escapar sonho algum de debaixo do chapéu e, como tal, olha para mim com um sorriso desolado. Dele recordo o medo que me mantinha a sorrir amareladamente enquanto passava na velha bicicleta cujo farolim a pender para o chão me hipnotizava. Ele já grande e eu puto, fugido dos horários das carreiras que na sua recta juntavam os dois pontos do segmento de recta que ia da escola a casa dos meus pais.
A vida tem sempre os seus adamastores e quando os aprendemos a dobrar ou, neste caso, quando eles se dobram sem os sabermos na forma de uma mão pesada e grossa no cabelo e um “tás bão?”, transformam-se na boa esperança que nos faz passar lá sempre que a maré deixa. Há uma certa necessidade de passar nas personagens que fazem o meu livro, este é uma delas. O fascínio pela simplicidade e inocência de quem vive sempre presente, sem passado e talvez sem futuro, e sem bicicleta.
Desde o roubo da bicicleta que os caminhos são feitos arduamente, digo eu, a meu ver, olhando para ele, de sorriso ao ombro, ninguém se lembrará que lhe faltam rodas à força, tal a desenvoltura e certeza no passo, pé ante pé, cambaleando carreiro abaixo como são todas as estradas abandonadas por quem as plantou.
Sob a ponte da autoestrada a sombra descansa por momentos, enquanto o vórtice animado a quem chamam Sol não se enfia para lados do Oeste e caça as sombras, como esta, descuidadas.
Na conversa duas mulheres, quase sombras, um feixe de lenha na carrela aguarda o fim da prosápia, a serra de cortar lenha com os seus ferozes dentes lambe restos de seiva de eucalipto e olha de soslaio para todas as árvores que ainda estão de pé. Uma delas, das mulheres, tem no cimo da cabeça uma rodilha enrodilhada numa roda tão bem dada que até parece ter nascido ali, fruto da perfeição que a Natureza incute a cada imperfeição nascida no meio das árvores, ou das pernas, vai dar tudo ao mesmo.
A cada estação, em qual estamos mesmo?, há uma nova tona no eucalipto, um novo olhar ao terreno em pousio e, parece-me, no António, um desejo de baldio.
Como o tempo não se compadece de olhares perdidos nem de caminhos fugidios, vai circulando e levando com ele aquilo que tanto António como eu partilhamos, a vontade de trilhar. Eu continuarei caminho sem saber muito bem para onde e ele, tolo, inocente, terá um reino à espera, cheio de garrafas de sumo, compridas ervas na boca, a língua de fora constantemente trilhada pelos dentes amarelados, num eterno presente de felicidade.
COM o calor saem da toca os suores, que se deixam cair embalados pela gravidade e pelo ondular do andar torpe daquela forma de gente a quem chamam António.
Aqui o nome é substituído pela realidade, de maneira a não se confundir com a ficção.
Cruza-se António comigo, o calor não deixa escapar sonho algum de debaixo do chapéu e, como tal, olha para mim com um sorriso desolado. Dele recordo o medo que me mantinha a sorrir amareladamente enquanto passava na velha bicicleta cujo farolim a pender para o chão me hipnotizava. Ele já grande e eu puto, fugido dos horários das carreiras que na sua recta juntavam os dois pontos do segmento de recta que ia da escola a casa dos meus pais.
A vida tem sempre os seus adamastores e quando os aprendemos a dobrar ou, neste caso, quando eles se dobram sem os sabermos na forma de uma mão pesada e grossa no cabelo e um “tás bão?”, transformam-se na boa esperança que nos faz passar lá sempre que a maré deixa. Há uma certa necessidade de passar nas personagens que fazem o meu livro, este é uma delas. O fascínio pela simplicidade e inocência de quem vive sempre presente, sem passado e talvez sem futuro, e sem bicicleta.
Desde o roubo da bicicleta que os caminhos são feitos arduamente, digo eu, a meu ver, olhando para ele, de sorriso ao ombro, ninguém se lembrará que lhe faltam rodas à força, tal a desenvoltura e certeza no passo, pé ante pé, cambaleando carreiro abaixo como são todas as estradas abandonadas por quem as plantou.
Sob a ponte da autoestrada a sombra descansa por momentos, enquanto o vórtice animado a quem chamam Sol não se enfia para lados do Oeste e caça as sombras, como esta, descuidadas.
Na conversa duas mulheres, quase sombras, um feixe de lenha na carrela aguarda o fim da prosápia, a serra de cortar lenha com os seus ferozes dentes lambe restos de seiva de eucalipto e olha de soslaio para todas as árvores que ainda estão de pé. Uma delas, das mulheres, tem no cimo da cabeça uma rodilha enrodilhada numa roda tão bem dada que até parece ter nascido ali, fruto da perfeição que a Natureza incute a cada imperfeição nascida no meio das árvores, ou das pernas, vai dar tudo ao mesmo.
A cada estação, em qual estamos mesmo?, há uma nova tona no eucalipto, um novo olhar ao terreno em pousio e, parece-me, no António, um desejo de baldio.
Como o tempo não se compadece de olhares perdidos nem de caminhos fugidios, vai circulando e levando com ele aquilo que tanto António como eu partilhamos, a vontade de trilhar. Eu continuarei caminho sem saber muito bem para onde e ele, tolo, inocente, terá um reino à espera, cheio de garrafas de sumo, compridas ervas na boca, a língua de fora constantemente trilhada pelos dentes amarelados, num eterno presente de felicidade.
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