O meu horizonte
Crónica de Domingo na Bird Magazine.
Atrás de uma montanha há sempre uma maior, dizem ou ouvia-se dizer quando esta questão de destino era tão só e apenas uma fé, dicotómica, negro ou branco. Na verdade, atrás de uma montanha parece vir uma tela ou uma rugosa superfície onde a paisagem muda a cada vez que olhamos.
Chego ao topo da montanha, o vento chega logo atrás de mim, sopra sem emitir som porque o silêncio vem ainda a subir a ladeira e neste vácuo nada se propaga. Lentamente chega, afobado, e logo o silêncio se torna ensurdecedor refastelado como um déspota multicéfalo sentado num trono chamado país acolchoado pelas vidas de quem, cegamente, o alimenta o viver.
Uma ou outra folha de eucalipto perde-se pelo ar, vai dançando, espiralando e oscilando até eu a perder de vista, não porque tenha ido para longe, mas porque foi para lá do que o meu olhar alcança. Não há mais montanhas além desta. Daqui para a frente apenas eu faço o horizonte e na indefinição tudo se perde para além desta linha imaginária onde tudo se alcança com o cerrar dos olhos.
Cortada perene está a vegetação, torgas que emergem do xisto, toscas, grossas e ásperas, fustigadas pela massa de ar perdida em altos e baixos pressurizados sem clima a que chamar casa, batem-me nas pernas, arranham-me. Há algo de sagrado, místico, científico, neste solo irregular e, por isso, tiro o calçado. Pego nas sapatilhas pelo calcanhar, o dedo indicador e o médio repartem a função de as segurar enquanto decido o que fazer. Decido-me e atiro-as para bem longe, vão resvalando até esbarrem no nada e desaparecerem como todo o horizonte, as folhas, o vento e o som. Descalço sobre o xisto estranhamente quente, vejo um carreiro de formigas que se desvia de mim até uma ou outra intrépida aventureira decidir trepar e fazer dos meus pés apenas duas montanhas, uma a seguir a outra. A analogia sai sem dificuldade, eu, desterrado, quase xistado, meio urze, meio torga, entre duas definições indefinido faço-me destino de uns pequenos seres para quem sou, nada mais, nada menos, que apenas e só um contorno a contornar, uma montanha a seguir a outra.
De repente, sem que o saibamos, somos passagem e destino de um vórtice a que chamamos vida. E no respeito que a vida de outros nos merece, fico parado a vislumbrar o carreiro tricotado e negro, de quando em vez uma ou outra traz às costas restos de algo que não percebo o que seja, tesouro, alimento, sustento, a santíssima trindade de quem se sabe insecto, afinal, qual o maior tesouro que o sustento ser o nosso alimento?
O carreiro passou. Pode parecer ficção, inventado por este narrador ausente, mas talvez pela analogia com o tricotado e a intermitência da formigada errantemente na pele nua, os pés parecem-me cosidos ao chão. Sim, ao chão, ao xisto. Tento dar um passo, desequilibro-me por ter os pés presos e resvalo trambolhando até parar agarrado a uma urze. Um pé está já para lá do horizonte, assusto-me com este inusitado momento de me ver sem pé. Sinto-o, rodo a bacia, a perna, mexo os dedos dos pés. Sinto-o, mas não o vejo. Há uma dormência, uma sensação de bem-estar afagado, chega-me à memória recordação de aconchego dos lençóis e cobertores ou manta de retalhos ao pescoço, o beijo na face, a mão na cabeça e o desejo de boa noite, antes de, sorrindo, entrar no sono.
E agora esta sensação de querer dormir. O horizonte vem por mim acima como se uma mão invisível o puxasse e o aconchegasse ao meu pescoço. Não ouso olhar para baixo para não me assustar, sei que de mim já não há corpo. Fecho os olhos à espera do beijo na face, sinto o vento raspar-me a bochecha e, lentamente, abro a mão que me prendia à urze e vou deslizando até, imagino, já não me conseguires ver.
Atrás de uma montanha há sempre uma maior, dizem ou ouvia-se dizer quando esta questão de destino era tão só e apenas uma fé, dicotómica, negro ou branco. Na verdade, atrás de uma montanha parece vir uma tela ou uma rugosa superfície onde a paisagem muda a cada vez que olhamos.
Chego ao topo da montanha, o vento chega logo atrás de mim, sopra sem emitir som porque o silêncio vem ainda a subir a ladeira e neste vácuo nada se propaga. Lentamente chega, afobado, e logo o silêncio se torna ensurdecedor refastelado como um déspota multicéfalo sentado num trono chamado país acolchoado pelas vidas de quem, cegamente, o alimenta o viver.
Uma ou outra folha de eucalipto perde-se pelo ar, vai dançando, espiralando e oscilando até eu a perder de vista, não porque tenha ido para longe, mas porque foi para lá do que o meu olhar alcança. Não há mais montanhas além desta. Daqui para a frente apenas eu faço o horizonte e na indefinição tudo se perde para além desta linha imaginária onde tudo se alcança com o cerrar dos olhos.
Cortada perene está a vegetação, torgas que emergem do xisto, toscas, grossas e ásperas, fustigadas pela massa de ar perdida em altos e baixos pressurizados sem clima a que chamar casa, batem-me nas pernas, arranham-me. Há algo de sagrado, místico, científico, neste solo irregular e, por isso, tiro o calçado. Pego nas sapatilhas pelo calcanhar, o dedo indicador e o médio repartem a função de as segurar enquanto decido o que fazer. Decido-me e atiro-as para bem longe, vão resvalando até esbarrem no nada e desaparecerem como todo o horizonte, as folhas, o vento e o som. Descalço sobre o xisto estranhamente quente, vejo um carreiro de formigas que se desvia de mim até uma ou outra intrépida aventureira decidir trepar e fazer dos meus pés apenas duas montanhas, uma a seguir a outra. A analogia sai sem dificuldade, eu, desterrado, quase xistado, meio urze, meio torga, entre duas definições indefinido faço-me destino de uns pequenos seres para quem sou, nada mais, nada menos, que apenas e só um contorno a contornar, uma montanha a seguir a outra.
De repente, sem que o saibamos, somos passagem e destino de um vórtice a que chamamos vida. E no respeito que a vida de outros nos merece, fico parado a vislumbrar o carreiro tricotado e negro, de quando em vez uma ou outra traz às costas restos de algo que não percebo o que seja, tesouro, alimento, sustento, a santíssima trindade de quem se sabe insecto, afinal, qual o maior tesouro que o sustento ser o nosso alimento?
O carreiro passou. Pode parecer ficção, inventado por este narrador ausente, mas talvez pela analogia com o tricotado e a intermitência da formigada errantemente na pele nua, os pés parecem-me cosidos ao chão. Sim, ao chão, ao xisto. Tento dar um passo, desequilibro-me por ter os pés presos e resvalo trambolhando até parar agarrado a uma urze. Um pé está já para lá do horizonte, assusto-me com este inusitado momento de me ver sem pé. Sinto-o, rodo a bacia, a perna, mexo os dedos dos pés. Sinto-o, mas não o vejo. Há uma dormência, uma sensação de bem-estar afagado, chega-me à memória recordação de aconchego dos lençóis e cobertores ou manta de retalhos ao pescoço, o beijo na face, a mão na cabeça e o desejo de boa noite, antes de, sorrindo, entrar no sono.
E agora esta sensação de querer dormir. O horizonte vem por mim acima como se uma mão invisível o puxasse e o aconchegasse ao meu pescoço. Não ouso olhar para baixo para não me assustar, sei que de mim já não há corpo. Fecho os olhos à espera do beijo na face, sinto o vento raspar-me a bochecha e, lentamente, abro a mão que me prendia à urze e vou deslizando até, imagino, já não me conseguires ver.
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