Segredos
Crónica de domingo na Bird Magazine.
Começo por procurar trechos já escritos, palavras engavetadas no fundo da prateleira para onde atiro muito do que fui e já nem me lembro ser. À flor ficam apenas algumas letras que penso saber de cor, mas é engano, meu e das dunas que se formam nas minhas mãos. O nevoeiro adensa-se com a recordação leve e frágil do momento actual. O que permanece é sempre aquele que se quer igual e, por isso, nada que se recorde nos instantes actuais pode ascender a ser eterno enquanto o infinito ainda não tiver nascido.
Assim, porque nada é crónico, entro devagar pela folha branca, pouso as nuvens e o sextante, bato os pés no tapete enrugado e deixo-me cair ao vento como se uma nuvem me fosse amparar a queda ondulada. O café aquecido e as tostas a boiar por entre a espuma, do café e dos dias, enquanto o açúcar, deliciado, se deixa derreter lentamente, no café e na boca. Era capaz de viver para sempre assim. Perdão, era capaz de deixar a vida viver-se para sempre, assim, como se os dias se pudessem vestir da forma como a vida se veste de mim.
Custa-me acreditar que as minha mãos se deixem quedar na rugosidade do muro enquanto escolho qual das histórias escrever. Acumulo os episódios de tudo o que não chove e talvez isso não seja salutar, mas que fazer às opiniões que não formo e, como tal, não escrevo? De repente, porque o passado gosta de se emoldurar à gente como um nevoeiro que se dissipa de cada vez que desviamos o olhar da encosta, desfaço a curva alcatroada e entro de novo na mocidade física por onde passei rápido de bicicleta.
Já nada mais me assusta, nem o medo, enquanto existirem acenos e apertos de mão a resgatarem os fins de tarde passados a circundar o espaço bicicleticamente traçado numa qualquer entrada de garagem.
Vejo-a fitar-me, sei que por detrás daqueles olhos cansados por onde muita vida entrou e retinou há um esforço de menina em encontrar-me nos velhos escaparates de memória. A caminho de uma reentrância noutra vida a memória vai-se tornando mais espaçada, quase como se o corpo pressentisse a proximidade de uma despedida e desejasse seguir viagem com a alma. Na verdade, cada qual na sua direção, um no infinito e outro no finito, ambos partes polarizadas de uma existência em quem tentamos discernir início e fim, de onde vimos e para onde vamos, sem nunca podermos sequer apresentar a vida à eternidade porque nem numa, nem noutra, podemos entrar e carinhosamente acariciar a face, pois as mãos são os átomos onde a energia volita e se desfaz em órbitas.
A rapidez da sombra nas janelas, chão, bancos e pessoas, das árvores, que por mim passa deixa-me atónito. Há um burburinho que se pode saborear. Por favor, parte o nascer do dia em dois, para que amanheça de novo quando eu, lentamente, começar a anoitecer.
O Sol vai já descendo sobre esta abóbada onde projectamos nuvens que nos fazem sonhar além delas. Sabe a lareira, o burburinho. Não o burburinho, mas a pronúncia, a forma como as vozes chegam até aos meus ouvidos.
Uma sílaba e um cheiro a fumo de eucalipto queimado.
Outra sílaba, a visão de restos de poda tardia ardendo no final de tarde.
Uma interjeição, já o restolho em brasa se cala sob a imponente força da voz do frio da noite que cai. Serpenteando pela paisagem, vou antecipando a imagem de me ver almoçar para não perder tempo no almoço. Calam-se as vozes.
O burburinho, como as brasas, esmorecem e já não aquecem. Uma voz metálica soluça sílabas ao ritmo de um algoritmo, como quem fala e não sabe o que diz.
Eu. Eu vou sabendo o que digo. Só não sei para onde não corro.
Vou contar-te um segredo, de forma aberta, para que não esqueças, do segredo e de ti.
Quando o frio te come o andar e a terra te mastiga os passos pela neve fria que começou a levantar, quando, e só mesmo nesse momento, vês o céu pintar-se de laranja e o Sol se esforça para te iluminar a cara fria, fecha os olhos, essa vida ninguém a tira a ti.
Dá alguns passos na certeza de um pé seguir o outro.
O universo que és habita o universo que tens e no infinito espaço entre ambos está o sublime, a ausência que a presença oprime. Um dia, a palavra que escrever será a palavra que voou. Será atrás dela que irei.
É um segredo.
Eu sei.
Começo por procurar trechos já escritos, palavras engavetadas no fundo da prateleira para onde atiro muito do que fui e já nem me lembro ser. À flor ficam apenas algumas letras que penso saber de cor, mas é engano, meu e das dunas que se formam nas minhas mãos. O nevoeiro adensa-se com a recordação leve e frágil do momento actual. O que permanece é sempre aquele que se quer igual e, por isso, nada que se recorde nos instantes actuais pode ascender a ser eterno enquanto o infinito ainda não tiver nascido.
Assim, porque nada é crónico, entro devagar pela folha branca, pouso as nuvens e o sextante, bato os pés no tapete enrugado e deixo-me cair ao vento como se uma nuvem me fosse amparar a queda ondulada. O café aquecido e as tostas a boiar por entre a espuma, do café e dos dias, enquanto o açúcar, deliciado, se deixa derreter lentamente, no café e na boca. Era capaz de viver para sempre assim. Perdão, era capaz de deixar a vida viver-se para sempre, assim, como se os dias se pudessem vestir da forma como a vida se veste de mim.
Custa-me acreditar que as minha mãos se deixem quedar na rugosidade do muro enquanto escolho qual das histórias escrever. Acumulo os episódios de tudo o que não chove e talvez isso não seja salutar, mas que fazer às opiniões que não formo e, como tal, não escrevo? De repente, porque o passado gosta de se emoldurar à gente como um nevoeiro que se dissipa de cada vez que desviamos o olhar da encosta, desfaço a curva alcatroada e entro de novo na mocidade física por onde passei rápido de bicicleta.
Já nada mais me assusta, nem o medo, enquanto existirem acenos e apertos de mão a resgatarem os fins de tarde passados a circundar o espaço bicicleticamente traçado numa qualquer entrada de garagem.
Vejo-a fitar-me, sei que por detrás daqueles olhos cansados por onde muita vida entrou e retinou há um esforço de menina em encontrar-me nos velhos escaparates de memória. A caminho de uma reentrância noutra vida a memória vai-se tornando mais espaçada, quase como se o corpo pressentisse a proximidade de uma despedida e desejasse seguir viagem com a alma. Na verdade, cada qual na sua direção, um no infinito e outro no finito, ambos partes polarizadas de uma existência em quem tentamos discernir início e fim, de onde vimos e para onde vamos, sem nunca podermos sequer apresentar a vida à eternidade porque nem numa, nem noutra, podemos entrar e carinhosamente acariciar a face, pois as mãos são os átomos onde a energia volita e se desfaz em órbitas.
A rapidez da sombra nas janelas, chão, bancos e pessoas, das árvores, que por mim passa deixa-me atónito. Há um burburinho que se pode saborear. Por favor, parte o nascer do dia em dois, para que amanheça de novo quando eu, lentamente, começar a anoitecer.
O Sol vai já descendo sobre esta abóbada onde projectamos nuvens que nos fazem sonhar além delas. Sabe a lareira, o burburinho. Não o burburinho, mas a pronúncia, a forma como as vozes chegam até aos meus ouvidos.
Uma sílaba e um cheiro a fumo de eucalipto queimado.
Outra sílaba, a visão de restos de poda tardia ardendo no final de tarde.
Uma interjeição, já o restolho em brasa se cala sob a imponente força da voz do frio da noite que cai. Serpenteando pela paisagem, vou antecipando a imagem de me ver almoçar para não perder tempo no almoço. Calam-se as vozes.
O burburinho, como as brasas, esmorecem e já não aquecem. Uma voz metálica soluça sílabas ao ritmo de um algoritmo, como quem fala e não sabe o que diz.
Eu. Eu vou sabendo o que digo. Só não sei para onde não corro.
Vou contar-te um segredo, de forma aberta, para que não esqueças, do segredo e de ti.
Quando o frio te come o andar e a terra te mastiga os passos pela neve fria que começou a levantar, quando, e só mesmo nesse momento, vês o céu pintar-se de laranja e o Sol se esforça para te iluminar a cara fria, fecha os olhos, essa vida ninguém a tira a ti.
Dá alguns passos na certeza de um pé seguir o outro.
O universo que és habita o universo que tens e no infinito espaço entre ambos está o sublime, a ausência que a presença oprime. Um dia, a palavra que escrever será a palavra que voou. Será atrás dela que irei.
É um segredo.
Eu sei.
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