Páscoa


- E agora?
Pergunto transpirado, apesar da madrugadora hora a que o faço, depois de sacudir as mãos e o pó que se desprende se transformar numa espécie de neblina dourada que o ar se encarrega de levar para polinizar o deserto, encostado à pedra que acabei de rolar, de mãos gretadas e inchado de esforço.
Olhas-me directo no olhar e esgueiras uma espécie de sorriso.
Há nesse teu silêncio sorridente uma resposta a toda a indagação que ainda nem se sabia pergunta, já tinha abraçada a si a compreensão daquilo que ainda não se tinha incompreendido.
Pousas a mão no meu ombro, a dor que moía maceradamente e me punha a pele comprimida contra o músculo avermelhada desaparece. Dizes-me para sairmos daqui, levanto-me a custo esquecido que estava do peso desta e da anterior noite, ao relento, tal como tinhas dito.
- Não podemos ficar por aqui? Estou cansado.
Mas tu sorris novamente, mirando-me na ternura com que um pai espreita o filho quando ele, inocente, se toma por si como mundo e nessa benevolência compreendo a estupidez da minha pergunta, qual a minha legitimidade para me cansar depois desses teus últimos dias?
Levanto-me enrubescido, ergo o corpo o suficiente para me aperceber que a manhã vem já a trautear despreocupado o horizonte, não se mostrando, mas anunciando-se na claridade que vai percorrendo o mundo dia após dia.
Começamos a caminhar não sem antes te passar a mão pela cintura e te auxiliar. Sei, ou melhor, imagino que essas tuas entradas e saídas carnais, nos desafios metafísicos que a ciência, ainda na sua infância, chamará de impossibilidades e singularidades, te causam uma espécie de entorpecimento enquanto não se aglomera a matéria desenergizada, descida que está pelas dimensões do que nem sonho existir.
- Seria necessário tudo isto? Não terias outra forma de o fazer?
Dizes-me que a fantasia a que um dia te iriam votar as vozes sobre o que falaste pedia que o esplendor e, também, a incredulidade do impossível fosse testemunho firme.
Não concordo, mas insistes, como se tivesses vindo agora de um futuro distante, uns milhares de anos?, e atestasses que de facto assim seria, tu, escorraçado e crucificado pelos teus, sereno sobre o alvoraçado tempo que se vai comendo a si mesmo, triunfante sobre a matéria que compõe esta camada de vida a que chamamos infinito.
Eu, ainda longe de perceber a profundidade do teu silêncio, compreendo mal o que falas, mas depois de te ver jorrado em sangue, apedrejado, escarrado pelas ruas sob o fustigo destes que, embora não o compreenda, amas, capaz de os veres da paliçada passividade de quem espera que o fruto nasça de semente que não se sabe semeada, depois de percorrer as tuas ruas e ver, de olhos marejados, as pedras ensanguentadas por onde passaste, trespassarem-te o peito, o olhar baixo e perdido no sacrifício com que olhaste para mim e, quando nem o vento ousava soprar-se naquela tarde fria, movimentaste os lábios para me dizer algo que esqueci no vai e vem de vidas vividas.
Ungido que és, nascido em díspares meridianos sobre outros nomes que te baptizem, trazes-me às mãos o odor ao orvalho da manhã fria, oh filho do Sol.
Eu nem me sei de nome, quanto mais de gente, sabes-me o que ainda nem me sei e isso basta-me para ser eu com todo este nada onde me deito feliz.
Chegamos onde queres, pousas as tuas mãos nos meus ombros, fazes nascer o universo onde antes moravam os meus olhos para me deixares ver as ondulâncias e os contornos do que não há.
Abraças-me e quase me esqueço de ser eu, preso nos pés que me caminham no mundo, de olhos fechados voam para longe as partes de mim que não me pertencem e esqueço-as facilmente.
Deixo de te sentir. Os meus ombros, apesar de não terem a leveza do teu abraço, ficam mais pesados ainda, descubro que o desânimo é verosímil, palpável, seco e agreste como tudo o que não é por apenas não ser.
Dou por mim a soluçar baixinho, escondo-me quando ouço passos e alguém que grita, apavorado, “Não está aqui!”.
Sim, não estás aqui, e agora?

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