Quaresma abandonada
Crónica de domingo na Bird Magazine
Perdido por planaltos beirãs e transmontanos, encontro gentes, velhas, encostando as mágoas umas às outras, no frio do granito, enquanto as mãos se arrastam, palma com palma, aquecendo-se, abraçando-se no engano de se abraçar alguém.
Há um bom dia que salta, os castelos abandonados encerram bem lá dentro não dragões aprisionados, mas tristeza e solidão libertadas, em forma de caras que na força das rugas se perdem as feições.
O Sol vai aquecendo como pode uma terra, e gentes, que se quer por lá, perdida, sem voto na matéria, quase sem matéria, num deserto acampado às portas do viver.
Um ou outro gato, um ou outro cão, umas ovelhas algures sem pastor, tilintam o chocalho no que é a banda sonora de quem se levante e não sabe se é dia ou noite, à força de viverem no escuro do chão.
Os brasões ostentam ainda as talhas, as memórias que se apagaram e, no descer arrastado a que me voto, estrada fora, com as mãos ainda nas rugas daquilo que não sei se serei, encontro uma Escola.
Abandonada.
O recreio tem as balizas enferrujadas, mato em vez de relva, duas tabelas de basquetebol morreram e os cestos pendem penosamente enquanto a tabela, pela falta de rega, se quebrou e caiu.
As janelas ainda ornamentadas pelos recortes (são cães, gatos, esquilos, estrelas, flores, sonhos) parecem tremer pelo frio que vem da sala vazia.
Várias marcas de vandalismo em forma de vidros partidos passam despercebidas ao lado do acoitado vazio que toda a escola apresenta.
Violência.
Morte.
Ainda se ouvem as crianças correrem no recreio, atafulhando a entrada com risos e atropelos, enquanto uma voz as manda sentar.
Os passos apressados pelo soalho, o arrastar das cadeiras, algumas mãos debaixo dos cus para se aquecerem, há-de fazer frio hoje e sempre pelos dias de Inverno que, aqui, se parecem sobrepor ao Verão e Primavera.
Na inocência maligna de quem nasce torto e tardará a endireitar, ouve-se o grasnar de uma boca ainda com migalhas secas no queixo e o branco fio de ranho seco sobre o lábio superior.
- Tens as sapatilhas rotas!
Anuncia num tom jocoso, apontando para baixo da mesa, onde ele, com os pés cruzados, fazia por esconder o bocado de meia branca que fugia pelo pequeno rasgão na sapatilha.
O rubor na face, as orelhitas vermelhas pelo misto de vergonha e fúria.
- O meu pai diz que tenho o pé forte, não é roto!
E enquanto a resposta parecia ter incendiado mais as gargalhadas, já ninguém ouviu a voz sumida do petiz
- Tenho umas novas para usar na procissão...
Perdido por planaltos beirãs e transmontanos, encontro gentes, velhas, encostando as mágoas umas às outras, no frio do granito, enquanto as mãos se arrastam, palma com palma, aquecendo-se, abraçando-se no engano de se abraçar alguém.
Há um bom dia que salta, os castelos abandonados encerram bem lá dentro não dragões aprisionados, mas tristeza e solidão libertadas, em forma de caras que na força das rugas se perdem as feições.
O Sol vai aquecendo como pode uma terra, e gentes, que se quer por lá, perdida, sem voto na matéria, quase sem matéria, num deserto acampado às portas do viver.
Um ou outro gato, um ou outro cão, umas ovelhas algures sem pastor, tilintam o chocalho no que é a banda sonora de quem se levante e não sabe se é dia ou noite, à força de viverem no escuro do chão.
Os brasões ostentam ainda as talhas, as memórias que se apagaram e, no descer arrastado a que me voto, estrada fora, com as mãos ainda nas rugas daquilo que não sei se serei, encontro uma Escola.
Abandonada.
O recreio tem as balizas enferrujadas, mato em vez de relva, duas tabelas de basquetebol morreram e os cestos pendem penosamente enquanto a tabela, pela falta de rega, se quebrou e caiu.
As janelas ainda ornamentadas pelos recortes (são cães, gatos, esquilos, estrelas, flores, sonhos) parecem tremer pelo frio que vem da sala vazia.
Várias marcas de vandalismo em forma de vidros partidos passam despercebidas ao lado do acoitado vazio que toda a escola apresenta.
Violência.
Morte.
Ainda se ouvem as crianças correrem no recreio, atafulhando a entrada com risos e atropelos, enquanto uma voz as manda sentar.
Os passos apressados pelo soalho, o arrastar das cadeiras, algumas mãos debaixo dos cus para se aquecerem, há-de fazer frio hoje e sempre pelos dias de Inverno que, aqui, se parecem sobrepor ao Verão e Primavera.
Na inocência maligna de quem nasce torto e tardará a endireitar, ouve-se o grasnar de uma boca ainda com migalhas secas no queixo e o branco fio de ranho seco sobre o lábio superior.
- Tens as sapatilhas rotas!
Anuncia num tom jocoso, apontando para baixo da mesa, onde ele, com os pés cruzados, fazia por esconder o bocado de meia branca que fugia pelo pequeno rasgão na sapatilha.
O rubor na face, as orelhitas vermelhas pelo misto de vergonha e fúria.
- O meu pai diz que tenho o pé forte, não é roto!
E enquanto a resposta parecia ter incendiado mais as gargalhadas, já ninguém ouviu a voz sumida do petiz
- Tenho umas novas para usar na procissão...
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