“Trigo e joio musical”
Crónica de Domingo, na Bird Magazine.
- Parece-me que o fim está próximo.
O semblante não preocupado de quem
profere afirmação apocalíptica surpreende.
- Porque dizes isso?
Continua calado, a soprar a espuma que
flutua sobre o café negro na caneca larga de metal e perdido um pouco nos
pensamentos que só ele poderá saber ter.
Levantou-se, com a caneca presa pelas
pontas dos dedos, o vapor sobe pela palma da mão e sai por entre os dedos e, de
repente, é como se aquela mão grande se parecesse com uma floresta na bruma,
envolta em nevoeiro espesso que se vai dissipando quando meia dúzia de raios
solares penetra árvores e raízes adentro.
Dá três passos para cada lado e
imagino-o como um gigante pêndulo de um relógio afinado, comparação que se
esmorece porque aqui, longe da tridimensionalidade, o tempo é um conceito que não
existe, pelo menos no sentido lato a que nos habituamos.
Olha para mim e com a cabeça aponta
para fora da janela. Levanto-me e aproximo-me, limpo o embaciado vidro e olho.
Um formoso berlinde azul, verde e
castanho, populado com neblinas brancas e cinzentas, que reluz a cada vez que a
face virada para a estrela, parece resplandecer um desequilibrado conjunto de cores.
Longas cores e deformadas circunferências daquilo que parece ser uma espécie de
campo electromagnético perturbado oscilam ao redor do planeta. Paciente, o
planeta, acomoda-se e reage pacientemente ao desequilíbrio que alguns dos seus
habitantes lhe causam.
A cada fração de segundo entram e saem
pequenos pontos luminosos daquela esfera minúscula, esquecida, pensam eles,
neste braço desta galáxia, uma entre infinitas, deste universo, um entre
infinitos.
Um ou outro ajuste é necessário,
seguindo referenciadas linhas geodésicas, o planeta rebuliça, expele-se,
contorce-se, apresenta por vezes um esgar de dor que se reflecte não pela cara,
que não a possui, pelo menos a olhos meus que o vejo daqui, de trás da vidraça,
mas sim no descolorido e esburacada campo que a circunda. Isto parece
preocupá-lo, rodopiando a caneca nos dedos, já sem o calor do vapor na mão,
encostando a cabeça à madeira que ladeia a janela e colocando uma mão sobre o
meu ombro. Suspira.
Parece-me dividido entre o amor de duas
criações, o jardim que plantou e as plantas que nele nasceram. Sem friezas nem emocionalismos,
mantém-se impávido no semblante preocupado. Cerra os olhos. Abre-os novamente.
Ao fundo, aquele berlinde colorido, rodopiando e girando num escuro firmamento,
sacode-se e liberta uns quantos pontos luminosos, aumenta a velocidade, novas
sementes nascem no jardim sem certeza (quem a terá) de quanto permanecerão no
solo arável.
Na medida que acelera, o campo que o
circunda parece homogeneizar-se, mas por pouco tempo. Desconhecedoras da
infinitude de jardins, de plantas e sementes que existem noutros e no mesmo
solo, estas agridem-se, flagelam-se, contorcionam ramos e espinhos, picando-se
a si mesmas e a todas as outras que a ladeiam. Por entre caótico cenário,
outras plantas permanecem em silêncio preocupando-se apenas em libertar o
máximo de sementes invisíveis, que ascendem ao véu azul e depois caem
indiscriminadamente pelo jardim, na terra queimada, negra e agredida, colocando
um pouco de balsâmico sentimento no desorganizado arado que se revolve, mas por
pouco tempo, pois outras espécies de plantas se preocupam em criminalizar e
organizar autênticas pragas sobre tudo o resto, deixando abandonadas plantas e
sementes de todas as espécies e todos os habitats, agindo como donas de um
jardim que desconhecem, mas mesmo assim tentam controlar, o solo, o vento, a
água que de ninguém cai para todos e nebulam o próprio véu azul com imagens
aterrorizadoras de um futuro que pertencerá a quem não se deixar confiar à sua
protecção.
- Espero pouco mais. Não poderei
sacrificar um jardim pelas plantas que não se deixam semear por elas mesmas.
- Porquê?
Não me respondeu.
Desencostou a cabeça da madeira, deu-me
um ligeiro apertão no ombro que me pareceu um emotivo até já.
Continuou a andar pela sala e saiu por
uma das portas que dão para infinitos alpendres nesta casa de infinitos
andares, acima e abaixo, digo-o embora nunca as tenha visitado pois ouço os
passos, acima e abaixo de onde estou.
Continuando a rodopiar, aquele pequeno
berlinde habitado por pobres, por vezes vorazes, seres desconhecedores da
infinidade de outros mundos além do seu próprio interior, sem estenderem ramos
e folhas para o astro e astros próximos, olham para o seu caule e admiram-se de
si mesmos, folheiam-se e pavoneiam-se sem a preocupação do pólen que transportam
e transbordam a cada respiração. Ao lado, caem e rebolam espécies de plantas diferentes,
embora partilhando o mesmo solo são vistas como inferiores, servindo para estas
atingirem os seus objectivos de ostentação, desaparecendo a cada rotação do
berlinde que habitam.
Pacientes, flutuam na invisibilidade orbes
de plantas distintas, de formas e espécies jamais imaginadas, na preocupação
deste jardim adoentado no limite da transformação musical, de uma oitava para
outra, prontos a acolher as plantas que se souberem música e decidirem escalar
a pauta da canção que são. Até no silêncio se podem fazer ouvir, na orquestral
sinfonia que parece reger este e todos os andares e horizontes para longe de
cada janela pode onde espreito e, acredito, outros possam também observar.
O som que emana, agora, parece um aglomerado
desorganizado de sons estilhaçados e desinteressados, sem preocupação por
harmonias ou desrespeitadores de qualquer maestro que as possa colocar
penduradas na serenidade do seu lugar na plantação, seja pauta musical, seja a
leira arada pelo mão de um criador.
Comentários