Desacordadamente
Crónica de Domingo na Bird Magazine.
Existe uma forma simples de começar o
dia, acordando.
Parece-me que a fórmula para a vida se
baseia nisto mesmo, acordar. E nestas questões matutinas, seja lá o momento em
que despertamos, parece-me que envolve um amanhecer para cada pessoa. Por
exemplo, eu acordo apenas quando me permito andar, ainda que mancando, como
agora, fruto de uma herniação discal bastante chata e dolorosa, saio do asfalto
ondulado a que comparo com uma vaga ondulante no Atlântico e, alçando a perna,
passo para a terra castanha, saibrenta, com restos de tonas ou cascas dos
eucaliptos, pequenas pedras e raízes resistentes de árvores e arbustos que não
existem mais, a que comparo ao extermínio da bondade humana pela ceifa certeira
e acutilante no silêncio entre as imagens estáticas que a televisão nos vai
permitindo cegar.
Só aí, no monte, no cheiro a terra
molhada que trago no palato, ainda que esteja, como agora, um Sol de Inverno
ainda que seja Outono e eu, no terminar do Novembro, me permita escrever os
meses com letra maiúscula, propriamente, como merecem.
O monte, ou bouça, vai subindo,
imagino-me na enseada de uma praia de uma das quaisquer ilhas dos Açores, onde
ficou uma parte de mim que desconhecia existir e que encontrei, apenas, quando
me vi lá, sentado num miradouro, a olhar para o horizonte aquático e sonhar-me
vulto numa terra ausente que, imagino, habita apenas no céu ou onde quer que inalcançáveis
os sonhos se permitam dormitar.
Passarei na terra, do raspar dos pés
nos passos pelo mato rasteiro com gotículas de um orvalho que caiu na madrugada
passada e persiste porque o Sol, esse apaixonado, ainda que mais próximo deste
dióspiro maduro que rodopia em torno de si, quer ver até onde se vislumbra a
sua sombra, pensando no dia em que sobrará de sombras em pontos cardeais que
não os usuais.
Antes de adentrar pelos tufos de musgo e
do espesso e fofo tapete de caruma olho uma vez mais para trás, ao longe na
noite mais comprida que impaciente começa a espreitar por detrás das dezasseis
horas, mais coisa, menos coisa. As estrelas olham admiradas para o tremeluzir
das luzes de Natal que parecem querer imitar o bruxulear astral de quem se
permite ser combustível a arder durante fracções da eternidade.
Começa a chegar, ele, a festividade,
vejo-o nos panfletos que inundam a minha caixa de correio, na miríade de coisas
que tentam colar ao corpo e ao ouvido, a indispensabilidade do acessório que
tornará a vida mais simples, fácil, divertida e com mais sentido!
Confesso-me atónito perante a
insignificância dos meus desejos de criança em ter uma lanterna, a mesma que,
depois de a tirar de dentro da bota ortopédica que deixava debaixo da chaminé,
sobre o velho fogão a gás, ligava e virava para o céu, fazendo sinais de luzes
para as estrelas que, na minha inocência, pareciam responder ao meu chamado. Hoje
sei que as estrelas brilham não pela lanterna, mas pelos sinais que vamos
emitindo, na inocência e ignorância de quem se deixe deslumbrar pela própria
estrela ou pelo reflexo de um dia tímido no tímido olhar de quem se sabe
perdido fora de si, pois um dia encontrar-se-á dentro de si.
Os dias correm mais depressa para todos
os desatentos que vivem cervicalizados sobre a cacofonia digitalizada de uma
vida que vamos tecnologificar porque nos esquecemos que os abraços analógicos
são para serem saboreados na companhia de nós mesmos e dos que sabemos trazer
na própria respiração.
Adentro monte ondulo pelo suave embalo
que o passo afundado pela mata permite navegar. Os pinheiros são eles mesmos,
independente de quem os veja, sinal da sinceridade despojada da Natureza. Eu
tenho tudo a aprender como eles e, por isso, saúdo-os quando lhes passo a mão
na casca e recolho um pouco da resina que vão lacrimejando ao mesmo tempo que
fotossintetizando-se lavam o ar e alma de um planeta que, digitalmente, vamos
abandonando, esquecendo-nos da facilidade com que ele, berlinde, nos pode
sacudir borda fora, como um cão que cansado da chuva se sacode e esperricha
gotículas em todas as direções e segue, depois, caminho fora sendo cão agora
seco.
Saio da ilha, perdão, do monte, e chego
a nova estrada, subindo a custo pelo despreparo físico e pelo marginalizado
pensamento de tentar perceber onde me quer levar a vida, a palavra e a vida que
me brilha pelo canto do olho.
Não existe muito mais para ver. A noite
esgueirou-se sem permissão do dia e vai crescendo até se fazer Natal, a noite
onde se percebe que nada mais importante há que sermos importantes para nós
mesmos, fazendo dos outros importantes, para que nada do que não precisamos
ganhe potencial de ser importante e permaneça, debaixo da árvore, no
lusco-fusco da iluminação de Natal, à espera de ser desembrulhado por quem não
saiba que o abraço é o melhor embrulho que podemos fazer a quem amamos.
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