Voltar ao que serei
in Bird Magazine.
Volto ao que sou, deitado, com a luz do candeeiro como Sol, cabeça apoiada na almofada, revivendo alguma história à medida que as letras secam no papel. Tentei, já duas vezes em dias consecutivos, escrever no computador, mas não consegui. Preguiça? Talvez sim, talvez não.
Aqui, neste meu novo caderno, estou mais perto do que pretendo, faltam apenas a chuva lá fora, as paredes de xisto, granito ou madeira, a luz trémula de uma vela, o telhado em madeiro ou colmo, as brasas a adormecerem na lareira apagada e uma manta de retalhos sobre mim.
Esta semana tive a oportunidade de andar pela Serra do Caramulo em trabalho, perdido em locais acessíveis apenas por veículos todo o terreno. Enquanto percorri, abaixado, as minas de água, pensava se seria capaz de morar por lá, onde o silêncio é o único som que se ouve. Passei por casas que, de casas ostentam apenas o nome, parecendo esquecidas do próprio tempo. De repente, uma senhora, não muito idosa, sai de casa com o cão atrás, daqueles cães que nunca souberam o peso de um cadeado ou o tecto frio de uma casota, seguindo em direcção a um retalho de terra, xistosa e saibrenta, cultivada onde apenas a insistência do homem, aquele com h grande, faz nascer uns troços de couves, batatas, cebolas, tomates, algumas vagens e pouco mais. Fico a olhar a senhora, ultrapassada agora pelo cão, sempre a farejar, como que confirmando que os mesmos cheiros de sempre não saíram de local. Imagino o que será viver assim, mas rapidamente volto à realidade ou pelo menos o que pensamos sê-la.
Creio que não deve existir nada melhor que trabalhar, labutar, dar forma a algo que não existia antes. Olho para as paisagens que me circundam e penso, para mim mesmo, porque seremos nós incapazes de tratar o planeta, ou pelo menos a porção dele que calcamos, como um jardim?
Que valores desvalorizados se erguem acima da nossa própria sobrevivência e dignidade?
O que nos impede de amarmos o ventos, o ar que respiramos, a mão calejada que nos saúda na berma de uma estrada desconhecida? Quanto vale a vida? As vidas?
Vejo essa máquina aterradora cilindrar pessoas, daquelas que nos elevam ao que somos, inocentes, apenas porque não conseguem subir a bordo de um navio fadado para naufragar, ao qual chamam sociedade.
Andamos, na rua, neste empedrado irregular que é a incerteza das nossas vidas a cada manhã que adormecemos, vamos olhando para quem por nós passa, corremos também, seguimos os trilhos que todos seguem, corremos mais, cada vez mais, sem sabermos para onde, porquê, sem nos preocuparmos com as que caem, nem os socalcos onde uns tropeçam, sem aplanar o caminho, sem ter a humildade de saudar uma das muitas flores que a maioria pisa.
Inspiro.
Corremos lado-a-lado, quase de mão dada, corpos que se roçam sem se aproximarem, mãos que se tocam sem se entrelaçarem, sorrimos esgares disfarçados de sorrisos, para que o mundo saiba que sim, estamos felizes. Mas nós algumas vezes pensamos no que somos? No que queremos de nós, dos outros, do nosso jardim, das palavras que plantamos no coração das pessoas? Que ilusão é esta a que muitos pretendem chamar vida?
Inspiro novamente.
Há algo de estranho no ar, a familiaridade com as nuvens, o espaço que respiro é o mesmo que alberga todos os sorrisos que florescem na noite, quando o corpo se desprende do corpo, há um caminho, um trilho antigo e agora descoberto, onde as lágrimas que brotaram floriram, sonhos que se julgavam adormecidos, uma estrada que nos leva ao cerne de nós mesmos, onde nos encontramos e onde todos os rios desaguam.
A senhora leva um braçado de cenouras, o cão deteve-se num cheiro novo, mas logo a alcança correndo. As chinelas negras levantam pequenas nuvens amarelas e o cão abana o rabo, como tantas outras vezes.
Imagino as couves, segadas, entrarem numa panela negra onde ferve água, aquecida numa cozinha com paredes de xisto e uma chaminé alta e escura.
Em cada local que passo há sempre algo de mim que me saúda, que me deixa mais feliz, mais interrogativo, com ânsia de ser algo que descubro a cada dia, com o desejo de ir onde não estou, encontrar outras partes de mim em faces desconhecidas, mas familiares.
Já algumas vez pensaste se todos, sem excepção, fossemos família? Tolerantes, respeitosos, sem pejo em afagar o cabelo de alguém a quem a desilusão mordeu, sorrindo, acenando, abraçando corpos e almas a cada reencontro, perguntando com carinho “estás triste?” e fazer uma pequena careta apenas para ver nascer, numa cara entristecida, um sorriso?
Volto ao que sou, deitado, com a luz do candeeiro como Sol, cabeça apoiada na almofada, revivendo alguma história à medida que as letras secam no papel. Tentei, já duas vezes em dias consecutivos, escrever no computador, mas não consegui. Preguiça? Talvez sim, talvez não.
Aqui, neste meu novo caderno, estou mais perto do que pretendo, faltam apenas a chuva lá fora, as paredes de xisto, granito ou madeira, a luz trémula de uma vela, o telhado em madeiro ou colmo, as brasas a adormecerem na lareira apagada e uma manta de retalhos sobre mim.
Esta semana tive a oportunidade de andar pela Serra do Caramulo em trabalho, perdido em locais acessíveis apenas por veículos todo o terreno. Enquanto percorri, abaixado, as minas de água, pensava se seria capaz de morar por lá, onde o silêncio é o único som que se ouve. Passei por casas que, de casas ostentam apenas o nome, parecendo esquecidas do próprio tempo. De repente, uma senhora, não muito idosa, sai de casa com o cão atrás, daqueles cães que nunca souberam o peso de um cadeado ou o tecto frio de uma casota, seguindo em direcção a um retalho de terra, xistosa e saibrenta, cultivada onde apenas a insistência do homem, aquele com h grande, faz nascer uns troços de couves, batatas, cebolas, tomates, algumas vagens e pouco mais. Fico a olhar a senhora, ultrapassada agora pelo cão, sempre a farejar, como que confirmando que os mesmos cheiros de sempre não saíram de local. Imagino o que será viver assim, mas rapidamente volto à realidade ou pelo menos o que pensamos sê-la.
Creio que não deve existir nada melhor que trabalhar, labutar, dar forma a algo que não existia antes. Olho para as paisagens que me circundam e penso, para mim mesmo, porque seremos nós incapazes de tratar o planeta, ou pelo menos a porção dele que calcamos, como um jardim?
Que valores desvalorizados se erguem acima da nossa própria sobrevivência e dignidade?
O que nos impede de amarmos o ventos, o ar que respiramos, a mão calejada que nos saúda na berma de uma estrada desconhecida? Quanto vale a vida? As vidas?
Vejo essa máquina aterradora cilindrar pessoas, daquelas que nos elevam ao que somos, inocentes, apenas porque não conseguem subir a bordo de um navio fadado para naufragar, ao qual chamam sociedade.
Andamos, na rua, neste empedrado irregular que é a incerteza das nossas vidas a cada manhã que adormecemos, vamos olhando para quem por nós passa, corremos também, seguimos os trilhos que todos seguem, corremos mais, cada vez mais, sem sabermos para onde, porquê, sem nos preocuparmos com as que caem, nem os socalcos onde uns tropeçam, sem aplanar o caminho, sem ter a humildade de saudar uma das muitas flores que a maioria pisa.
Inspiro.
Corremos lado-a-lado, quase de mão dada, corpos que se roçam sem se aproximarem, mãos que se tocam sem se entrelaçarem, sorrimos esgares disfarçados de sorrisos, para que o mundo saiba que sim, estamos felizes. Mas nós algumas vezes pensamos no que somos? No que queremos de nós, dos outros, do nosso jardim, das palavras que plantamos no coração das pessoas? Que ilusão é esta a que muitos pretendem chamar vida?
Inspiro novamente.
Há algo de estranho no ar, a familiaridade com as nuvens, o espaço que respiro é o mesmo que alberga todos os sorrisos que florescem na noite, quando o corpo se desprende do corpo, há um caminho, um trilho antigo e agora descoberto, onde as lágrimas que brotaram floriram, sonhos que se julgavam adormecidos, uma estrada que nos leva ao cerne de nós mesmos, onde nos encontramos e onde todos os rios desaguam.
A senhora leva um braçado de cenouras, o cão deteve-se num cheiro novo, mas logo a alcança correndo. As chinelas negras levantam pequenas nuvens amarelas e o cão abana o rabo, como tantas outras vezes.
Imagino as couves, segadas, entrarem numa panela negra onde ferve água, aquecida numa cozinha com paredes de xisto e uma chaminé alta e escura.
Em cada local que passo há sempre algo de mim que me saúda, que me deixa mais feliz, mais interrogativo, com ânsia de ser algo que descubro a cada dia, com o desejo de ir onde não estou, encontrar outras partes de mim em faces desconhecidas, mas familiares.
Já algumas vez pensaste se todos, sem excepção, fossemos família? Tolerantes, respeitosos, sem pejo em afagar o cabelo de alguém a quem a desilusão mordeu, sorrindo, acenando, abraçando corpos e almas a cada reencontro, perguntando com carinho “estás triste?” e fazer uma pequena careta apenas para ver nascer, numa cara entristecida, um sorriso?
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