A teu lado, sozinho
Crónica de domingo na BirdMagazine.
“ I”
Houve noites em que a cama dormiu fria e sozinha, tiritando na ausência da corpuscularidade masculina nos serões em que o suor molhava o cansaço e, assim, na ilusão da refresquidão, entrava-se noite dentro, entre o frio que as estrelas transpiram e o calor das fornalhas. Há que manter pão na mesa dos outros. E na nossa. Para conforto bastaria saber que no quente da manta que separa a noite do corpo dos filhos, todos dormiam a justiça de um trabalho são, mulher, filhos e a sua consciência.
Noutros casulos, uma cozinha velha, preta, onde o vento uiva porque o telhado não assenta correctamente nas paredes, um forno velho tapado com panfletos de promoções de um antro-mercado qualquer, a pedra onde se fazia a lareira, as telhas de vidro para entrar o Sol, um rosto velho, onde o tempo gastou o olhar, umas velas retorcidas, um corpo num banco envolto em neblina invisível, uns sorrisos ténues e uns parabéns merecidos cantados pelos vizinhos próximos na falta de família.
As memórias passam-me à frente como vulgares molduras onde se contorcionam as personagens que estes que a terra comerá, contente e chamando-lhes olhos, vêm vezes sem conta.
Não me surges no final do túnel, mas no princípio das minhas noites. Chamam-te luz e tu chamas-me pelo nome que te dei, coisa simples e fugaz, como os olhares e os rangidos lentos dos passos num soalho velho, como velho é o tempo que me nasce quando acordo.
Repousava-te no cansaço, se assim fosse possível, mas os impossíveis com que me pinto são suspiros que jamais urdi. Vá-se lá saber porquê, mas as estrelas nascem antes da madrugada, nos limites do meu horizonte, onde se cruzam as estradas que partem no teu caminho.
Caminho ainda sem saber andar, como se me moldasse o vento e a poeira, como se os meus pés fossem o atropelo do meu destino, como se andasse apenas para não chegar onde estou.
Ouço-te aí, no reflexo da luz na tua retina, nas tuas mãos tacteando as palavras que relevei, no peito abafado que é a almofada onde se deita o resto daquilo que me tenho.
Sou tão pouco e, cá em mim, sou o mundo.
Não sei quanto tempo passou desde que estou aqui, sentado, com o teclado no colo, com frio, a olhar para o monitor e a pensar no que escrever, na ordem pela qual devo escrever o que tenho na mente, ou neste arquivo ou hardware embutido, que se chama cérebro e que eu comando.
Existe uma tendência natural para as pessoas exprimirem o que pensam sobre o mundo, contra o mundo, o que o mundo tem de mal, o que o mundo tem de bom e eu gosto de ter a tendência de ser o mundo a escrever sobre as pessoas, o que dá lugar para um paradoxo, se fosse eu o mundo, então estaria a escrever sobre mim mesmo, ou uma parte de mim mesmo, porque as pessoas, ou biliões delas, são outra parte do mundo. Ou não.
Tinha cara condizente com corpo, velho. Movia-se amparado por duas muletas, que ainda sustinham o olhar pesado de quem na vida é estuprado pelos sonhos. Calça cinzenta e pullover fino beije. A pele da cara colada aos ossos, branca, como se até o sangue não tivesse força para subir à face, como se não quisesse irrigar olhos, que vislumbram apenas solidão.
Vi-o caminhar, lentamente, na passada calma de quem não tem para onde ir na vida. Dirigiu-se à capela, o relógio cansado dizia que, mais coisa menos coisa, eram 1:00 da noite. Encostou uma muleta ao gradeamento da capela (sim, porque os locais de culto ainda são vedados com ferro forjado encimado por lanças) e apoiado na outra tentou abrir a porta. Esta não cedeu, talvez faltasse a palavra mágica ou a reza certa ao santo certo na hora certa. Olhou em redor, talvez encontrasse alguma forma de entrar (comovo-me pensar que as pessoas ainda encontrem conforto na prece, no local sagrado). Mas entrar para quê?
A resposta veio depois, já com ele sentado no cruzeiro em frente à capela fechada, aparentemente o horribilis-humanus que, à força de genealogia, se chama filho ou filha, o tinha posto fora de casa. E agora, um corpo já torcido pelo tempo, senta-se nas escadas que ladeiam um cruzeiro de granito, sem lugar para onde ir, nem nos sonhos, que não há corpo que sonhe numa noite fria e de orvalho.
Há humanos ainda humanos e, de repente, surgiram cama, lençóis, quatro braços que o deitaram no leito e um copo de leite quente para chamar o sonho.
No dia seguinte, entre a vergonha e o agradecimento o velho vivia ainda, sem orvalho e com a fé ainda solta, ao contrário da outra, que está presa entre lanças. E o almoço, também surgiu, "o senhor vai ali ao restaurante, que já se falou com o dono", com vergonha de novo "por amor de deus, não me façam isso", mas a visão da comida quente foi mais forte que o embaraço e lá foi, acompanhado pelas muletas.
Eu, que ainda tenho esperança no ser humano, fico prostrado, destruído, sem conseguir conter a raiva e com a visão de uma pessoa – uma pessoa, sabem o que é? – sentada, de frente para o mundo que lhe virou as costas.
“II”
Ia perdido nos meus pensamentos, que disparavam em todas as direcções à velocidade que caiam as gotas de chuva no pára-brisas. A única música permitida era o som metódico, monocórdico e angustiante do limpa pára-brisas...
Tinha saído da curva, vagueando em pensamentos obtusos, dignos de quem se perdia num ralo descendente de emoções quando o vi, parado, em pé, a olhar para o nada e a sorrir.
Chovia, mas ele, impávido e sereno, continuava ali, com um blusão azul escuro de tecido impermeável, alto, fartos cabelos grisalhos, olhos claros, rosto barbeado, mãos nos bolsos das calças cinzentas, sapatos desapertados, negros, gastos e grandes. Tinha apenas uma camisa sob o blusão e sobre o corpo velho e os botões das calças desapertados, o que fazia com que se visse a roupa interior.
Chovia, mas continuava, ali, a sorrir.
Abrandei a velocidade e passei por ele lentamente.
Parecia ter parado no tempo, a caminho ou de saída, do posto dos correios. Ao passar por ele não pestanejou ou acompanhou o carro com o olhar, vi-o pelo espelho e ele continuava lá, parado.
De repente, segui para o destino, enquanto outra parte saía de mim mesmo, completo, com o carro, com os pensamentos e emoções e quase seguia em frente na rotunda, que contornei, voltando atrás, olhando novamente e ele, impávido e pleonasticamente sereno, continuava parado a sorrir.
Uma outra parte de mim saltou do carro, atravessando o metal da porta, deu duas cambalhotas e ficou prostrado no chão, à chuva, apoiado sobre o braço direito. Levantou-se e atravessou a estrada, ficando a conversar com aquele estranho homem, enquanto eu continuei a olhá-lo pelo retrovisor e só parei quando cheguei à próxima curva. Subi a avenida e, no triângulo, dei a volta, para passar novamente por ele.
Ao sair da curva, antes do posto dos correios, lá estava ele, ainda parado, ainda à chuva.
Alguns carros passavam por ele, lentamente e olhando, enquanto outras pessoas, no passeio, desviavam-se para não lhe embarrarem com o guarda-chuva. E, o mais intrigante, era aquela pose, de quem já nem está na vida, com o olhar vago, perdido, a sorrir para a neblina.
Parei um pouco, ainda a ouvir a música do limpa pára-brisas, com os pensamentos versando agora apenas uma coisa: aquela figura no horizonte, com toda a vida a passar por ele e ele ali, parado, à chuva, a conversar com uma outra parte de outra parte de mim mesmo.
Arranquei por falta de noção sobre o que fazer, mas ao passar por ele não consegui evitar e parei, abri o vidro e perguntei "Quer boleia para algum lado?", ao mesmo tempo que pedia interiormente que negasse, encharcado iria molhar certamente os estofos, logo os estofos, que não iriam secar facilmente com este tempo chuvoso.
Não se mexeu, olhou para mim e sorriu, abanando a cabeça negativamente. Fechei o vidro e com o carro desengatado deixei-o ir lentamente em direcção à rotunda. A outra parte da outra parte de mim mesmo estava ao lado dele, fitando-me com reprovação.
Contorno a rotunda, paro a seu lado, no outro lado da estrada, abro o meu vidro e, molhando-me, pergunto de novo "Quer boleia para algum lado?"
Atravessou a estrada, deixando para trás um dos sapatos, abriu a porta e sentou-se, enquanto eu tentava fechar o meu vidro.
Arranquei, olho para ele, olhava divertido para a chuva no pára-brisas e batia com a mão no joelho ao mesmo ritmo do limpa pára-brisas. A outra parte da outra parte de mim mesmo surgiu à minha frente, a tempo de se sentar sobre mim e ganhar corpo com o meu corpo.
E eu... Eu fiquei sem o conhecimento do que disse o velho à outra parte da outra parte de mim mesmo, nem o que fez a outra parte de mim mesmo, porque eu apenas segui o meu caminho na rotunda, para o meu destino.
“ I”
Houve noites em que a cama dormiu fria e sozinha, tiritando na ausência da corpuscularidade masculina nos serões em que o suor molhava o cansaço e, assim, na ilusão da refresquidão, entrava-se noite dentro, entre o frio que as estrelas transpiram e o calor das fornalhas. Há que manter pão na mesa dos outros. E na nossa. Para conforto bastaria saber que no quente da manta que separa a noite do corpo dos filhos, todos dormiam a justiça de um trabalho são, mulher, filhos e a sua consciência.
Noutros casulos, uma cozinha velha, preta, onde o vento uiva porque o telhado não assenta correctamente nas paredes, um forno velho tapado com panfletos de promoções de um antro-mercado qualquer, a pedra onde se fazia a lareira, as telhas de vidro para entrar o Sol, um rosto velho, onde o tempo gastou o olhar, umas velas retorcidas, um corpo num banco envolto em neblina invisível, uns sorrisos ténues e uns parabéns merecidos cantados pelos vizinhos próximos na falta de família.
As memórias passam-me à frente como vulgares molduras onde se contorcionam as personagens que estes que a terra comerá, contente e chamando-lhes olhos, vêm vezes sem conta.
Não me surges no final do túnel, mas no princípio das minhas noites. Chamam-te luz e tu chamas-me pelo nome que te dei, coisa simples e fugaz, como os olhares e os rangidos lentos dos passos num soalho velho, como velho é o tempo que me nasce quando acordo.
Repousava-te no cansaço, se assim fosse possível, mas os impossíveis com que me pinto são suspiros que jamais urdi. Vá-se lá saber porquê, mas as estrelas nascem antes da madrugada, nos limites do meu horizonte, onde se cruzam as estradas que partem no teu caminho.
Caminho ainda sem saber andar, como se me moldasse o vento e a poeira, como se os meus pés fossem o atropelo do meu destino, como se andasse apenas para não chegar onde estou.
Ouço-te aí, no reflexo da luz na tua retina, nas tuas mãos tacteando as palavras que relevei, no peito abafado que é a almofada onde se deita o resto daquilo que me tenho.
Sou tão pouco e, cá em mim, sou o mundo.
Não sei quanto tempo passou desde que estou aqui, sentado, com o teclado no colo, com frio, a olhar para o monitor e a pensar no que escrever, na ordem pela qual devo escrever o que tenho na mente, ou neste arquivo ou hardware embutido, que se chama cérebro e que eu comando.
Existe uma tendência natural para as pessoas exprimirem o que pensam sobre o mundo, contra o mundo, o que o mundo tem de mal, o que o mundo tem de bom e eu gosto de ter a tendência de ser o mundo a escrever sobre as pessoas, o que dá lugar para um paradoxo, se fosse eu o mundo, então estaria a escrever sobre mim mesmo, ou uma parte de mim mesmo, porque as pessoas, ou biliões delas, são outra parte do mundo. Ou não.
Tinha cara condizente com corpo, velho. Movia-se amparado por duas muletas, que ainda sustinham o olhar pesado de quem na vida é estuprado pelos sonhos. Calça cinzenta e pullover fino beije. A pele da cara colada aos ossos, branca, como se até o sangue não tivesse força para subir à face, como se não quisesse irrigar olhos, que vislumbram apenas solidão.
Vi-o caminhar, lentamente, na passada calma de quem não tem para onde ir na vida. Dirigiu-se à capela, o relógio cansado dizia que, mais coisa menos coisa, eram 1:00 da noite. Encostou uma muleta ao gradeamento da capela (sim, porque os locais de culto ainda são vedados com ferro forjado encimado por lanças) e apoiado na outra tentou abrir a porta. Esta não cedeu, talvez faltasse a palavra mágica ou a reza certa ao santo certo na hora certa. Olhou em redor, talvez encontrasse alguma forma de entrar (comovo-me pensar que as pessoas ainda encontrem conforto na prece, no local sagrado). Mas entrar para quê?
A resposta veio depois, já com ele sentado no cruzeiro em frente à capela fechada, aparentemente o horribilis-humanus que, à força de genealogia, se chama filho ou filha, o tinha posto fora de casa. E agora, um corpo já torcido pelo tempo, senta-se nas escadas que ladeiam um cruzeiro de granito, sem lugar para onde ir, nem nos sonhos, que não há corpo que sonhe numa noite fria e de orvalho.
Há humanos ainda humanos e, de repente, surgiram cama, lençóis, quatro braços que o deitaram no leito e um copo de leite quente para chamar o sonho.
No dia seguinte, entre a vergonha e o agradecimento o velho vivia ainda, sem orvalho e com a fé ainda solta, ao contrário da outra, que está presa entre lanças. E o almoço, também surgiu, "o senhor vai ali ao restaurante, que já se falou com o dono", com vergonha de novo "por amor de deus, não me façam isso", mas a visão da comida quente foi mais forte que o embaraço e lá foi, acompanhado pelas muletas.
Eu, que ainda tenho esperança no ser humano, fico prostrado, destruído, sem conseguir conter a raiva e com a visão de uma pessoa – uma pessoa, sabem o que é? – sentada, de frente para o mundo que lhe virou as costas.
“II”
Ia perdido nos meus pensamentos, que disparavam em todas as direcções à velocidade que caiam as gotas de chuva no pára-brisas. A única música permitida era o som metódico, monocórdico e angustiante do limpa pára-brisas...
Tinha saído da curva, vagueando em pensamentos obtusos, dignos de quem se perdia num ralo descendente de emoções quando o vi, parado, em pé, a olhar para o nada e a sorrir.
Chovia, mas ele, impávido e sereno, continuava ali, com um blusão azul escuro de tecido impermeável, alto, fartos cabelos grisalhos, olhos claros, rosto barbeado, mãos nos bolsos das calças cinzentas, sapatos desapertados, negros, gastos e grandes. Tinha apenas uma camisa sob o blusão e sobre o corpo velho e os botões das calças desapertados, o que fazia com que se visse a roupa interior.
Chovia, mas continuava, ali, a sorrir.
Abrandei a velocidade e passei por ele lentamente.
Parecia ter parado no tempo, a caminho ou de saída, do posto dos correios. Ao passar por ele não pestanejou ou acompanhou o carro com o olhar, vi-o pelo espelho e ele continuava lá, parado.
De repente, segui para o destino, enquanto outra parte saía de mim mesmo, completo, com o carro, com os pensamentos e emoções e quase seguia em frente na rotunda, que contornei, voltando atrás, olhando novamente e ele, impávido e pleonasticamente sereno, continuava parado a sorrir.
Uma outra parte de mim saltou do carro, atravessando o metal da porta, deu duas cambalhotas e ficou prostrado no chão, à chuva, apoiado sobre o braço direito. Levantou-se e atravessou a estrada, ficando a conversar com aquele estranho homem, enquanto eu continuei a olhá-lo pelo retrovisor e só parei quando cheguei à próxima curva. Subi a avenida e, no triângulo, dei a volta, para passar novamente por ele.
Ao sair da curva, antes do posto dos correios, lá estava ele, ainda parado, ainda à chuva.
Alguns carros passavam por ele, lentamente e olhando, enquanto outras pessoas, no passeio, desviavam-se para não lhe embarrarem com o guarda-chuva. E, o mais intrigante, era aquela pose, de quem já nem está na vida, com o olhar vago, perdido, a sorrir para a neblina.
Parei um pouco, ainda a ouvir a música do limpa pára-brisas, com os pensamentos versando agora apenas uma coisa: aquela figura no horizonte, com toda a vida a passar por ele e ele ali, parado, à chuva, a conversar com uma outra parte de outra parte de mim mesmo.
Arranquei por falta de noção sobre o que fazer, mas ao passar por ele não consegui evitar e parei, abri o vidro e perguntei "Quer boleia para algum lado?", ao mesmo tempo que pedia interiormente que negasse, encharcado iria molhar certamente os estofos, logo os estofos, que não iriam secar facilmente com este tempo chuvoso.
Não se mexeu, olhou para mim e sorriu, abanando a cabeça negativamente. Fechei o vidro e com o carro desengatado deixei-o ir lentamente em direcção à rotunda. A outra parte da outra parte de mim mesmo estava ao lado dele, fitando-me com reprovação.
Contorno a rotunda, paro a seu lado, no outro lado da estrada, abro o meu vidro e, molhando-me, pergunto de novo "Quer boleia para algum lado?"
Atravessou a estrada, deixando para trás um dos sapatos, abriu a porta e sentou-se, enquanto eu tentava fechar o meu vidro.
Arranquei, olho para ele, olhava divertido para a chuva no pára-brisas e batia com a mão no joelho ao mesmo ritmo do limpa pára-brisas. A outra parte da outra parte de mim mesmo surgiu à minha frente, a tempo de se sentar sobre mim e ganhar corpo com o meu corpo.
E eu... Eu fiquei sem o conhecimento do que disse o velho à outra parte da outra parte de mim mesmo, nem o que fez a outra parte de mim mesmo, porque eu apenas segui o meu caminho na rotunda, para o meu destino.
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