Ascensão ao adro
Crónica de domingo na Bird Magazine
Promete chuva, o céu, meticulosamente
ordenado em nuvens escuras e menos escuras, como se a escuridão se dividisse em
possibilidade de chuva e possibilidade de apenas ser possível chover.
A passo apressado, vergam-se numa
espécie de vénia estrada acima, depositando no asfalto enegrecido e irregular
velas circulares, que alguém, igualmente apressado, atrás, vem acendendo com um
isqueiro.
O percurso fica iluminado lateralmente,
o vento não consegue extinguir as pequenas chamas que vão tremeluzindo com medo
que chova. E chove, pouco, é certo, mas o suficiente para alguns incautos
pingos de chuva se fazerem cair, ao contrário dos relâmpagos, duas vezes no
mesmo local e se, por acaso, o mesmo local calha de ser o cimo da vela, o
pavio, então temos menos uma luzidia e tremeluzente chama azul e amarela para
deleitar quem no caminho se fará de cabeça baixa e na luz a que reza encontre a
sua rota iluminada pela encerada vela incrustada em prateado invólucro.
Fui, se tanto, uma vez na procissão de
velas, em tempo de catequese e de procissão maior em menor corpo. Agora crio
apenas um pequeno caminho iluminado, três pequenas velas que coloco no
parapeito, para que vejam as suas irmãs, no chão, paradas, na mão, professadas,
já que as luzes no interior das pessoas há muito se teimam em apagar.
O vento traz estrada acima a voz grave
amplificada da oração do sacerdote, não o vi, soou quase como a ribombante voz
que se diz ouvir quando Deus fala connosco. Neste caso, nem Deus, nem voz,
apenas eu e tu, sós.
A cada rosário um coro, vozes
titubeantes, não sei se pela emoção se pelo caminhar que faz o ar nos pulmões
bater cavernosamente enquanto oscila, de lado para lado, de cima para baixo.
A chuva decidiu cair, umas poucas mais
velas apagam-se, os corpos aproximam-se quando partilham um guarda-chuva, um
recém casal que se encosta, ele passa-lhe a vela, abre o guarda-chuva,
cobre-lhe os ombros com o braço e segura o guarda-chuva enquanto ela, sorrindo
timidamente, encosta a cabeça ao seu ombro e nas mãos ocupadas pelas duas velas
leva o sonho e pedido para que a procissão ou a chuva demorem um pouco mais que
o usual.
Assisto, atrás da cortina, à traseira da
procissão e, por isso, por não me verem, posso ver as pessoas pelas costas da mesma
forma que as veria pela frente se não me vissem, puras e sem máscaras.
Caminham e sobem esta pequena subida que
contorna o nicho onde ardem algumas velas e se concentram gentes de outros
tempos que luzem noutras paragens já, sinto um beliscão na perna, quer ver a
procissão. Iço-o para o colo, mas ele prefere sentar-se no parapeito, afasto a
cortina e ele ri-se, esqueço-me que podes ver por ela, penso, e rio-me também.
A minha respiração embacia o vidro salpicado pela parte de fora e, por
brincadeira, desenho uns óculos por onde espreitas a sorrir. Encostas a cabeça
ao vidro, o cabelo desfaz um pouco dos fictícios óculos que eu tinha desenhado
com a minha falta de talento e tu olhas para mim como que a desculpares-te.
Vieste sozinho, pergunto-lhe, afirmando
como que interrogando.
Não falas, ainda, falarias, mas o tempo
quer-se como a procissão, caminhando por entre a luz, procurando-a sem sabermos
que a levamos connosco, na mão e no peito.
O sermão vai longe, a procissão
serpenteou solenemente contornando os resquícios de habitação onde moramos sem
habitar, a voz do padre propaga-se em duas direcções, mas o vento leva a oração
para o lado oposto onde estamos, subindo a estrada e pregando a uma multidão
que já não o escuta. Vejo, pelo que me contas, alguém que leva a vela, braços
estendidos, exibindo-a como o seu pequeno troféu, sem saber, criança, que só
aquele sorriso ilumina mais que todas as velas no caminho, da procissão e da
vida dela.
A cauda acabou de desaparecer na curva à
direita, quando os paralelepípedos se encostam ao asfalto, ainda te tenho no
parapeito enquanto te vejo olhar para as velas no chão e aparentas sentir algo
por elas.
Queres ir lá, pergunto, mas dizes que
não com a cabeça, pareces-te comigo, no silêncio, na mudez, nas viagens que
fazes sem te dirigires ao destino, até por isto, por te sentares no escuro,
comigo, sozinho.
Continuamos até ver algumas pessoas
surgirem na estrada, a procissão terminou, dispersou e vem agora estrada acima,
porque não vejo estrada abaixo, de velas e corações apagados e tu tens pena,
dizes-me, das velas que continuam a luzir sem terem que as ilumine.
Por saber ao que tristeza chove,
afasto-me da janela e deixo-te a olhar para o caminho e para as três velas que
persistem no parapeito. Embora cogite, não tenho certeza do que és feito.
A porta faz o usual barulho ao ser
penetrada na fechadura pela fria chave, viras a cabeça de repente, sorris, mas
creio que ela não te viu.
Vem até mim, Estás fria, digo-lhe ao
tocar os braços nus depois de tirar o casaco.
Perguntas-me se quero ir contigo ao
nicho, colocar uma vela.
Assim, pergunto e admiro-me, ainda de
pijama ou lá o que queiram chamar ao calção e t-shirt e tu, como sempre,
sacodes os ombros e lanças o típico, e quê?
Nada mais faço que sorrir, deve ser a minha
resposta sem voz, enquanto sais da cozinha com o sorriso aberto e a vela que
levaste na procissão do ano anterior, Guardo a deste ano e vamos colocar a do
ano passado, para o ano repetimos.
Arrepio-me ao sair à rua em calção, o
frio anda por aqui à solta e ao ver-me incauto embrulha-se imediatamente nas
pernas. Vamos andando, de mão dada, numa ligeireza lenta, até conseguirmos
olhar para trás e ver o efeito das velas no nosso parapeito, não as vemos,
surgem apenas as chamas projectadas no alumínio lacado das janelas e na parede.
Não sei se o vês, não o mencionas, eu também não, mas ele catraio desce como
descem as luzes sem pavio e vai connosco, no nosso meio, por entre os nossos
passos.
Sem procissão sem aflição, o nicho está
vazio, iluminado por umas gambiarras que dançam com o vento e com seis ou sete
velas, de tamanhos diferentes, que, protegidas por uma cortina de ferro, vão
ardendo indiferentes a outra luz que não a delas.
Colocas a vela no círculo vazio, ela
afunda-se e fica bem mais pequena que as outras, murmuras algo sobre luz para
todos que precisam, confesso que não escutei, estava distraído a olhar para
eles, afinal o outro estava à nossa espera ali, sentado nos degraus do nicho, como
se soubesse que íamos lá ou, na verdade, talvez tenha sido ele, o mais novo, a
dizer-te para passares por ali, para me fazeres vencer a preguiça e o teimoso
hábito de me recatar.
Viramos costas, agora sim, vamos
sozinhos, a vela ficou lá, a arder timidamente por entre as outras e eles,
petizes, ficam ali na entrada do nicho, de mão dada a sorrir, espero que
orgulhosos de nós, ou de ti, principalmente, que de mim só se vêm bafejados
sonhos nos vidros das janelas por onde passo.
Vejo-os passarem por ti, fazem-te
cócegas na cara com os lábios e soprando fazem o teu cabelo ondular. Sorris,
coças a cara, dizes que está vento enquanto passas a mão pelo cabelo e eu
vejo-os ascendendo no adro até se tornarem, também eles, pequenas velas
bruxuleantes no céu nocturno, ainda que nublado.
A vida tem velas que o pavio desconhece.
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