Noite de Verão
Crónica de Domingo na Bird Magazine.
O calor vem endiabrado outeiro acima
ainda o diabo esfrega um olho, o sono ainda não se lembra de acordar e o
silêncio sai estremunhado pelo cacarejar de um galo madrugador, sem receio de
ser transformado em cabidela.
Esta terra parece ter bafo de bicho, bravo,
uma tríade de maldade, humanidade e oportunidade.
O mato vai seco como mato se quer,
espinhoso afasta quem dele se quer aproveitar, das viagens fugidias de um jovem
casal que se desprende aos iniciáticos prazeres do mundo corporal, do pastor
que pé lá é coisa que não lhe apetece colocar ainda que lhe fuja uma outra mais
tresmalhada, de todo o resto que vigia o terreno com receio de lhe ter que
chegar a enxada à mão e esta à terra.
Só não afasta a mão falheira, o olhar
tolhido de tudo o que lhe possa ser ocasião, diria que não era ladrão, mas vai
já lá dar tudo ao mesmo, verão, a ponta do cigarro virada para a palma rugosa e
agreste, o bocado de jornal que se fez atrás companheiro de retrete, a brasa, o
sopro, o papel, a chama.
Daqui a pouco, já o sino por eles chama.
O lume vai estranhar a liberdade, olhará
para todos os lados, sensoreando, saboreando antecipadamente a secura por onde
se possa espreguiçar e pé ante pé, ou chama ante chama até se metamorfosear
labareda, subirá encosta acima, desacostumado a cansaços mundanos, isso é lá
para aqueles fulanos!, até ser já um bicharoco jocoso que à boleia do vento
salta de poiso em poiso como uma pandemia que se alastra aleatoriamente pela
fraqueza sem dono a quem governantes corjados votaram ao abandono.
Correm de calças na mão, no sufoco
aflito de quem ouve no peito a árvore e o seu grito, de enxada, ancinho,
sachola, pá, gravetos secos aos ombros e enquanto não se faz a chamada, já o
dia é alvorada, correm esbaforidos como pastores adormecidos no posto, ladeira
acima, chamando a si à força de braços um gado flamejante tresmalhado.
- Ai se chega ao centeio!
Acodem-se uns aos outros, deixando no
lenço sobre a cara o suor e o expectorado sufoco do fumo, o veneno que sabe a
morte rápida de outrens e lenta, nossa.
Atrás, a apreciar o espectáculo em
vésperas de noitada, já com o calor do bagaço a invejar-se do braseiro carvoado
rubro, sentado numa pedra onde adormeceu o orvalho nas noites frias, com o
resto do cigarro a queimar o lábio gretado, descansa com as pernas esticadas e
os braços atrás das costas, cruzados. É o doido, chamam-no, assim foi eleito
por todos, até por quem nada quis saber dele.
- Aqui d'El Rei!
Mas longe vão tempos monásticos, quem
lhes rouba agora é democrata, as mulheres correm com as enfusas a vomitar água,
os putos espreitam com as ceroulas ao fundo do cu o espectáculo dantesco,
embora não saibam ou venham a saber quem foi Dante. Dante apenas o dia de
ontem.
O sino pica alto, o badalo sobressaltado
e de olhar assustado vai-se soltando ao puxão forte de quem se apressou a subir
quatro degraus na escada improvisada, semi-enferrujada, e vai puxando na
cadência certa o baraço carcomido pelo tempo, sol e chuva, calor e frio.
O mato seco, o silvado misturado, meia
dúzia de fetos, dois ou três casais de raposas e ratos a perder de vista, não
pelo número, mas por serem minúsculos, saltam pelo monte abaixo confundindo-se
com a massa de gente armada de medo monte acima.
O dia amanhece.
- Parece impossível o fogo dar-lhe assim
de madrugada.
- Isto tem dedo do diabo!
O cabresto sufragiado sorri na pedra.
Os homens à força de braço aram o fogo
como quem planta receios do futuro e antes que se chegue o calor a terra onde
não deva lamber, já o cabelo, as pestanas e sobrancelhas adquirem nova coloração,
essência de fuligem.
Uma ou outra cinza semi-incandescente
escapa como pequena estrela cadente na noite, mas sobram ainda forças de quem
amamenta, para ceifar o lume ainda antes de ser faúlha com as enfusas, jarros,
baldes, tinas e bacias prenhes de água.
Por esta escapa, o lume andou a lamber
as bordas da sorte, aqui já só nasce morte.
- Pelo menos com esta jeira não nos
preocupamos agora.
- Para o ano há-de dar pastagem.
Aos poucos recolhem-se cada qual a seu
pátio, uns comprovam no dedo o buraco que uma faúlha mais afoita fez nas
calças, ali junto à ferramenta, dando lugar à gargalhada desatenta de quem se
vê na vida como quem se lamenta.
Os lenços sobre o queixo secam o suor da
testa e sacodem o carvão da mão.
É Verão.
Se sempre foi assim, porque não
continuar, melhor, maior?
Pouco nos valha, ainda que nos arda a
dor.
É Verão e assim reza a tradição.
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