À boleia de mim

in Bird Magazine.

Saí e ele já lá estava. Apesar do orvalho nos carros e na relva do jardim, permanecia sentado no pequeno muro que mais não é que berma, com as pernas flectidas, a cabeça a olhar para o chão e, com um pau, fazia pequenos desenhos na gravilha. Assim que saí do passeio e pousei o pé na gravilha, mesmo perdido nos desenhos e pensamentos dele, não pode evitar de me ouvir, levantou a cabeça na minha direcção e sorriu muito. Acenou-me e gritou
- “Ei!”
como se eu não o pudesse ver ou ouvir dos dez metros que me separavam dele.
Tem corpo, cara, olhar e sorriso de criança, espera por mim onde quer que eu vá, onde quer que eu esteja, perdi a memória de quando o conheci, até mesmo de como o conheci. Aparece aleatoriamente, segundo os meus padrões, e conta-me histórias que depois escrevo, num qualquer caderno, em prosa, poesia ou chamemos-lhe o que entendermos. Por vezes pede-me que mude de direcção quando conduzo, já nem pergunto porquê, lá terá as suas razões, mas nem assim consigo, à boa maneira de psicologia invertida,
- “mas que tem que ter razões?”
pergunta-me ele a rir, naquele jeito de quem tem sempre um rebuçado de caramelo na boca, fazendo pequenos barulhos com os lábios para não deixar cair o suco. E mesmo quando respondo que a razão dele é dizer que nem tudo tem que ter razão, lá vem ele com as mesmas expressões e o mesmo encolher de ombros,
- “e gostaindes de ter razão...”.
Quando cheguei ao carro, já ele me agarrava o casaco,
- “onde vais?”
pergunta enquanto tento equilibrar os cadernos, carteira, telemóvel e chaves do carro. Meto a chave e abro as portas, troçando dele com o meu silêncio, repito a pergunta que ele me fez e ele ri-se, muito, como só as pessoas com olhar e sorriso de criança conseguem.
- “Anda daí, vou ao ensaio do grupo”
Entro no carro, juntamente com ele, coloco o cinto de segurança e ele pede-me para ligar o limpa pára-brisas, o orvalho não o deixa ver a estrada e bem que se esforça!, lutando contra o cinto de segurança, e esticando o pescoço para ver por entre as zonas do vidro que ainda não ficaram embaciadas. Ligo o limpa pára-brisas e ele ri, acompanha o movimento com a cabeça e repete o mesmo som que as escovas semi-gastas (quer dizer, nem novas, nem gastas, a modos de assim-assim) fazem, como que acordam com preguiça.
Arranquei e vi-o pegar num dos cadernos , começou a desfolhar e a olhar para as letras,
- “vais enjoar”
disse-lhe automaticamente, porque como enjoo, deduzo que também ele enjoe, mas paro a tempo, ainda não tinha acabado de dizer a letra “r”, já ele me olhava com os olhos esbugalhados e contendo uma gargalhada. A troca de olhar foi o suficiente para nos rirmos durante grande parte do caminho.
Há piadas que só fazem sentido com determinadas pessoas, em determinados momentos, com determinados indeterminados da vida.
Saio da autoestrada e ele, muito sério, adverte-me
- “diz boa noite à senhora da portagem”
antes de parar o carro tenho já na mão o cartão multibanco e o ticket, enquanto abro o vidro.
- “boa noite”
e sorri para a senhora.
Tinha uma cara cansada, antipática, revoltada e triste, envolta numa pequena nuvem negra. Entrego o ticket e ele mete a mão no bolso, tirando um pequeno berlinde de algodão doce. Apertou-o e o tempo parou, eu estava imóvel, sem respirar ou pestanejar, conseguia-o ver mas sem poder mexer-me.
Desapertou o cinto de segurança, pouso os meus cadernos no banco de trás, abriu a porta e dirigiu-se à senhora. Até o carro que passava na Via Verde estava imóvel. Abriu a porta e colocou-se por detrás dela. Fechou os olhos e sorriu, antes de fazer o habitual: soprou na direcção da nuca da senhora até aquela pequena nuvem escura desaparecer. Saiu da cabine da portagem, fechou a porta e tornou a entrar no carro, acomodando-se. Depois suspirou e levou à boca o bocado de algodão doce, altura em que tudo retomou o movimento usual, o carro passou na Via Verde e a minha respiração voltou a processar-se normalmente.
A senhora, quando me entregou o recibo e o cartão multibanco sorria, retribuindo-me o
- “boa noite, obrigado e boa-viagem”
Eu sorri, ele também, e arranquei.
Ao entrar no ensaio ele ficou à porta, foi sentar-se sobre uma pilha de folhas de plátano que o vento, talvez por preguiça, não espalhou durante o dia.
Saio do ensaio e ele ainda lá estava, repetindo o mesmo procedimento, acenou-me como se não me visse há décadas, repetiu o mesmo ritual e fez-me as mesmas perguntas
- ”onde vais?”
- “sabes para onde vou, porque perguntas sempre a mesma coisa?”
retribuí, a sorrir, vendo se pela primeira vez o apanhava sem resposta, mas ele sorriu e deu-me a mão
- “eu sei para onde vais, é só para ver se tu também sabias...”
O orvalho fez-me tiritar de frio, entramos no carro e fiz-me à estrada, ou seja, aos cerca de 700 metros que distava de casa onde, qual bela adormecida, a Ana dormia.
Entrei sem fazer barulho, ou com o menor possível, pousei as tralhas e aqueci uma chávena de leite
- “também queres?”
perguntei por instinto, e por instinto foi que desatámos os dois, novamente, a rir. Há cada pergunta.
Sento-me ao computador, ligo-o, olho para a folha branca e confidencio-lhe
- “sabes, gostava de escrever alguma coisa diferente, mas não sei o quê”
Só consegui perceber um pequeno berlinde de algodão doce na mão dele e um sorriso de criança, mostrou-o e disse
- “fecha os olhos”
Quando os abri, ele sorria para mim e com a cabeça apontou para o monitor, fazendo-me olhar também.
Encontrei o que vejo agora mesmo, algumas linhas escritas, sem que me lembrasse de as ter escrito.
- “Por agora chega”,
engoliu o pequeno berlinde de algodão doce e deu-me um abraço.
Por momentos senti a vontade de lhe perguntar quem era, creio que nem o nome recordo.
Vejo passar nos meus olhos um pequeno filme, de quando era um pequeno rapaz, e um outro pequeno rapaz, quase transparente como uma pequena nuvem, se desprendia de mim.
Seria eu mesmo, em criança, a minha criança, o meu eu?
- “Até já”,
concluiu, enquanto corria em direcção à parede e a atravessava, sorrindo como sempre...

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