Dia mundial da população

Crónica de domingo na Bird Magazine.

Deveria ter terminado, mas ainda aqui estou, a sacudir as ideias dos ombros e deixando que nasçam planícies para onde quer que olhe.
Ontem foi dia da população e eu não sei o que celebrar, isto porque o termo população tem tantas conotações e significados ou distinções, que não sei se estou a honrar a animalesca definição biológica, a insípida sociológica ou, como no quotidiano somos tratados, a estatística.
A população, adormecida, que acorda de manhã e pergunta pelo Sol ao ver a própria sombra, é um grupo de pessoas, indivíduos, que acasalam entre si e, assim, produzem descendência, mas, também, pode ser aquele grupo ou conjunto de pessoas num local e num período de tempo, sem qualquer importância ou vitalidade,
- É aquilo ali – de braço estendido enquanto viram a face para trás e de olhos revirados dão um pequeno abanão com a cabeça para trás, apontando com a nuca.
Hoje, quando ligas a televisão, és um conjunto de elementos, és apenas um resultado de um estudo, de uma investigação.
A acidez toma conta de mim quando escorre em sal, ainda que não neve, ao constatar que precisamos de um dia para celebrarmos algo que poderia estar constantemente em festa. 
Uma pesquisa rápida diz-me que este dia é celebrado todos os dias 11 de Julho desde 1989. É neste dia que se chama (leia-se, apenas, ONU) a atenção do mundo para questões populacionais no contexto dos “planos e programas de desenvolvimento, assim como a necessidade de encontrar soluções para as mesmas”.
Este ano o tema foi “Acesso Universal aos Serviços de Saúde Reprodutiva”, os quais “visam destacar o papel essencial que a saúde reprodutiva desempenha na criação de um mundo justo e equitativo”.
Ainda segundo a ONU, “Perto de 222 milhões mulheres gostariam de evitar ou atrasar a gravidez devido à falta de planeamento familiar eficaz, enquanto que cerca de 800 mulheres morrem todos os dias em trabalhos de parto.”
A hora tardia empurra-me para uma leitura mais deturpada e não consigo deixar de pensar nas inúmeras cabeças desumanas que se permitem olhar para a população como o conjunto de pessoas, mais ou menos humanas, para quem deve existir um controlo de natalidade apertado o suficiente para não andarem por aí as pobres mulheres, sejam de que idade forem, a parirem a torto e a direito e a semearem filharada. Corro o risco de ser mal interpretado, sei-o.
A mulher, perdão, a Mulher tem o direito de fazer o que quer da sua vida, é o seu direito a partir do momento em que a pariram e ela reclamou a plenos pulmões o seu grito de liberdade. 
É dever, apenas e só, de cada pessoa que tem o prazer de habitar esta pequena esfera azul, ajudar quem necessita e, neste caso, quem o faz deve fazê-lo pela sua própria experiência, pelo que aquilo que a vida já lhe trouxe pelos olhos e, por vezes, pelo corpo dentro. Não cabem aqui as abomináveis histórias de um mundo que permite uniões pedófilas, de mutilações genéticas ou de qualquer índole, de enaltecimento e manutenção de um estatuto subalterno da mulher, perdão, Mulher, apenas pela diferença genital. Sim, mulheres gostariam de atrasar a gravidez, conheço casos, conheço motivos, da mulher e do homem, concordo? Não com todos e, aqui, a opinião do autor é a opinião do autor, nada mais, é baseada na experiência daquilo que a vida me chutou nos dentes. 
Se vamos agir mediante o que nos diz o nosso acarinhado egocentrismo, estaremos a dar opiniões que não são nossas, mas sim o produto mesológico em que se tornam a partir da hora em que nos esquecemos que o nosso tempo aqui é um segundo.
A população ou populações, tem que ser composta por sete biliões de almas ou, vá lá, pessoas, humanos. 
Façam-se os impossíveis por dar a dignidade essencial a quem cá chega, molhado, gosmado, ensanguentado, vindo de um local escuro, aquático, habituado a um confinado lar que foi o útero feminino por longos meses e se depara com o medo e o desconhecido, esses dois bons amigos. 
Façam-se os impossíveis por dar a dignidade essencial a quem cá está e se vê no início da gestação como condutora de um corpo que acolhe um outro corpo, com todas as mudanças inerentes, subjacentes, seja protegida, pare-se o mundo se assim for preciso, que se calem armas e falsas amas, que se pousem no chão os afazeres e as opiniões e se unam a seu redor machos e fêmeas, cada qual a seu ofício, cada mão um suporte, verguem-se vimes e acolchoem-se embaladeiras, tarda nada está do lado de cá da vida um novo ser, vindo dali, de dentro daquela mulher. 
Compete-nos a todos apoiar (não digo concordar com) as mulheres, famílias, que se vêm a braços com o nascimento em qualquer situação, acima de tudo nas situações de precariedade, sejam monetárias, humanas, sociais. 
Compete-nos ajudar a embalar os filhos não nascidos, enquanto abraçamos os corpos das mães sem filhos, calçar um pouco da dor, permitir que pai-mãe-filho possam ter aquilo que necessitam e que é seu por direito e nosso por dever: Amor.

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