Nas asas
Crónica de domingo na Bird Magazine.
Fito o meu braço, rio-me com as letras projectadas, de repente tenho escrito em mim parte da frase “quebrar em caso de emergência”. Fico a cogitar sobre o que o vidro me tenta dizer. Graúdo, não me sobra braço para toda a afirmação, mas curioso-me com a tatuagem possível e ergo um sorriso a esta espécie de sincronicidade, que leva o dia a escrever no braço, no meu braço, “caso de emergência”. Quereria dizer-me, talvez a vida, que o braço, os braços, os abraços, ainda que no calor, sejam um caso de emergência, urgência tida por quem sozinho se faz à vida?
Os passos que tento dar rapidamente, para fugir do calor súbito que quase não me deixa ver o empedrado chão, fazem-se acompanhados de uma ligeira praguejação, minha e doutras que reclamam deste braseiro transmontano que visitou a cidade.
Abrando o passo quando encontro uma sombra, mas mantenho-me lesto enquanto fito os ponteiros do relógio e calculo os minutos que me faltam até o comboio entrar na gare.
Vou ultrapassar um casal de idosos que, no calor desta tarde, andam lentamente, ele à frente, agarrado à asa de um destes sacos ecologicamente modernos, vermelho, ela atrás, com os olhos revirados do calor, ambos uma mistura secular de idade conjunta. Sorrio ao passar por eles, a senhora retribui o sorriso e diz-me, “Atrás de um homem, há sempre uma grande mulher” e a pobre alma que carrega o seu peso e quase arrasta o peso da companheira retribui com tédio “bem poderias hoje ser mais pequena”.
As cumplicidades que se fazem ao longo das idades reverberam na velhice, quando os passos se fazem a quatro mãos, ainda que separadas por um túmulo.
O calor desce pelas escadas rolantes sem se compadecer das pessoas que se escondem no semi-subterrâneo que é a galeria de acesso às plataformas e consequentes linhas de partida e chegada dos comboios. Se fosse o frio, analogiaria de imediato com a sua necessidade de fugir de si mesmo e procurar calor no contacto com as pessoas que escondem as mãos nos bolsos tentando aquecê-las, mas é o calor, não há lugar a analogias nem a mãos frias. Desce disparado a gare, entra de rompante no corredor e aninha-se no torpor de cada pessoa, fazendo transpirar pelos poros e paredes gotículas de um suor brotado sem ser trabalhado.
Ascendo, apenas figuradamente, à plataforma, valido o passe e a nostalgia surge na recordação das antigas bilheteiras, o carimbar da data no bilhete, o agreste homem de bigode que me vendia o bilhete sem um bom dia sequer obliterar, o cheiro do óleo queimado, a paisagem ondulante nos dias de calor, o som dos meus passos nas travessas atravessadas na linha que me permitiam chegar à linha do lado de lá, as mesmas que se vêm quando se sai de lá para cá.
Perdido por entre as memórias de viagens que nunca mais retomarei, vejo passar um vulto vermelho. Um bombeiro segura uma botija de oxigénio, outro, mais novo, segue-o segurando um desfibrilador portátil, de passo apressado.
Um homem, velho, sentado no banco de comboio olha assustado para o aparato e ruboriza-se ao constatar que é o centro das atenções dos transeuntes que aguardam a vinda gloriosa do comboio.
Uma mulher acaricia-lhe a face, desaperta-lhe outro botão da camisa de padrão riscado e afasta-lhe os colarinhos da caminha e da camisola azul do pescoço transpirado.
Ajoelhado em frente a ele, o bombeiro mais velho olha-o, pergunta o que aconteceu. A senhora responde-lhe, um pouco embargada, que parecia ter-se desequilibrado ao final das escadas rolantes e se não era ela a ampara-lo teria ele caído para trás.
Olho para o lado, cabisbaixo o calor envergonha-se de se fazer tão forte e sai da gare, levando-se lívido para o meio da tarde.
Eu, talvez por ter sido arrastado das minhas viagens entre o hoje, ontem e amanhã, ensonado e descoincidido de mim mesmo, vejo uma translúcida figura masculina, uma espécie de pessoa impessoal, cujo corpo parecia luzir uma luminosidade que não fere e que se esbate no sem contorno que o caracteriza e desvanece-se em transparência. Coloca a mão quase transparente sobre o ombro da mulher que amparou o idoso e o olhava, agora, num misto de apreensão carinhosa e rememoração saudosa de alguém partido.
O bombeiro diz-lhe que pode ir agora, o comboio estará a chegar tarda nada, mas para ela, senhora, parecia tardar tudo, responde-lhe a esta espécie de anjo sem asas, que não, não tinha pressa, que faria o mesmo como se se tratasse do seu querido “paizinho”, senhora dixit.
O bombeiro sorri, levanta o joelho que tinha no chão, pisca o olho ao bombeiro mais novo e ergue-se. Coloca a mão no ombro do idoso, “posso levantar-lhe a camisola para medir a tensão”? O senhor responde que sim, “mas eu tenho comboio agora”, “não, o senhor não pode sair daqui enquanto não estiver melhor, está bem?”, “mas o comboio”, “tem alguém a quem possamos avisar que chega mais tarde? A sua esposa?”, “ela já morreu e eu tenho que apanhar o comboio”, “não se preocupe” retorquiu a senhora “eu levo-o a casa”, “mas eu moro na Régua”, “então temos um longo e bonito passeio para fazer” e sorriu, ao mesmo tempo que o vulto lhe passa as mãos transparentes pelos fios de cabelo que caíram sobre a face.
Vejo agora outros, mais ou menos translúcidos, menos ou mais luminescentes, uma pequena multidão parece rodear esta imagem de tarde sufocante. No perímetro estão pelo menos dois vultos bem maiores do que eu, uma espécie de barreira luminosa que forma um halo e me faz lembrar a luz que via passar-me pelos contornos dos dedos quando colocava a mão em frente ao sol.
Com carinho e cuidado, medem-lhe a tensão, auscultam-no, perguntam com sensibilidade se lhe estava a doer “aqui” e “aqui” e “agora aqui?”. O bombeiro mais novo acata a ordem do mais velho e retorna à ambulância, suponho, com o desfibrilador enquanto o outro desenha um padrão no telemóvel e entra em contacto com alguém.
O comboio surge ao fundo, na curva, ganhando dimensão como um velho e grande dragão que se anuncia pela cabeça e depois abre as asas entrando de rompante, silvando, na estação. Olho mais uma vez com o intuito de guardar bem cá no fundo da retina esta imagem, as pessoas levantaram-se com a chegada do comboio, faço por ser o último a entrar na carruagem amarela e já sentado, comigo a meu lado, olho para trás pelo vidro e por entre os reflexos do interior do comboio despeço-me um pouco emocionado pelo turbilhão de sentimentos que me chegam como uma maré aos olhos.
Enquanto o comboio arranca vou virando a cabeça para poder ver apenas um pouco mais.
Ficam lá o idoso, desorientado, a senhora, que parece ter ganho uma inesperada orientação e o seu vulto luzidio com a transparente mão no seu ombro, o bombeiro mais velho com uma mão no ombro do idoso acarinhando-o e a outra no telemóvel, ostentando uma espécie de luminescência que lhe brota nas costas abaixo do pescoço e, aos meus olhos destreinados, se assemelham a umas asas, como se pudesse ser!, feitas do mesmo material dos outros vultos.
O comboio segue lesto na viagem quente, ganha velocidade, eu ganho apenas idade e vou, sentado, de frente para a lateral da carruagem, vendo o meu reflexo no vidro, as mesmas letras “quebrar em caso de emergência”.
Baixo um pouco a cabeça e penso na inevitabilidade da vida, das vidas, que se iniciam algures e terminam nenhures, no aglomerado de luminescências que se vestem de companhia, nos vultos que se fazem vestes e se deixam atravessar por tantas e tantas vidas sem vida dentro, na miríade de habitantes de um universo que por infinito me parece tão pequeno.
O hipnótico som das rodas nos carris quentes e dilatados começa a embalar-me.
Penso no idoso que ficou sentado no frio banco metálico da plataforma, na sua fragilidade, no seu olhar assustado, de vultos rodeado, no chegar a casa e encontrar alguém, um filho preocupado, um cão de saudade espumado, uma esposa, se ainda a tivesse, de avental bordado e o susto que a susteria ao ver chegar o companheiro em companhia desconhecida... Não acabo o pensamento, dou um daqueles passos falheiros que damos ao adormecer e abro os olhos estremecendo de repente.
Vejo no vidro o reflexo de alguém que não se senta a meu lado, pousa-me sobre a perna um avental, de arco-íris bordado, “a surpresa será dele, ao ver que quando pensou que eu partia eu estava ali ao lado dele e sorria”.
Fito o meu braço, rio-me com as letras projectadas, de repente tenho escrito em mim parte da frase “quebrar em caso de emergência”. Fico a cogitar sobre o que o vidro me tenta dizer. Graúdo, não me sobra braço para toda a afirmação, mas curioso-me com a tatuagem possível e ergo um sorriso a esta espécie de sincronicidade, que leva o dia a escrever no braço, no meu braço, “caso de emergência”. Quereria dizer-me, talvez a vida, que o braço, os braços, os abraços, ainda que no calor, sejam um caso de emergência, urgência tida por quem sozinho se faz à vida?
Os passos que tento dar rapidamente, para fugir do calor súbito que quase não me deixa ver o empedrado chão, fazem-se acompanhados de uma ligeira praguejação, minha e doutras que reclamam deste braseiro transmontano que visitou a cidade.
Abrando o passo quando encontro uma sombra, mas mantenho-me lesto enquanto fito os ponteiros do relógio e calculo os minutos que me faltam até o comboio entrar na gare.
Vou ultrapassar um casal de idosos que, no calor desta tarde, andam lentamente, ele à frente, agarrado à asa de um destes sacos ecologicamente modernos, vermelho, ela atrás, com os olhos revirados do calor, ambos uma mistura secular de idade conjunta. Sorrio ao passar por eles, a senhora retribui o sorriso e diz-me, “Atrás de um homem, há sempre uma grande mulher” e a pobre alma que carrega o seu peso e quase arrasta o peso da companheira retribui com tédio “bem poderias hoje ser mais pequena”.
As cumplicidades que se fazem ao longo das idades reverberam na velhice, quando os passos se fazem a quatro mãos, ainda que separadas por um túmulo.
O calor desce pelas escadas rolantes sem se compadecer das pessoas que se escondem no semi-subterrâneo que é a galeria de acesso às plataformas e consequentes linhas de partida e chegada dos comboios. Se fosse o frio, analogiaria de imediato com a sua necessidade de fugir de si mesmo e procurar calor no contacto com as pessoas que escondem as mãos nos bolsos tentando aquecê-las, mas é o calor, não há lugar a analogias nem a mãos frias. Desce disparado a gare, entra de rompante no corredor e aninha-se no torpor de cada pessoa, fazendo transpirar pelos poros e paredes gotículas de um suor brotado sem ser trabalhado.
Ascendo, apenas figuradamente, à plataforma, valido o passe e a nostalgia surge na recordação das antigas bilheteiras, o carimbar da data no bilhete, o agreste homem de bigode que me vendia o bilhete sem um bom dia sequer obliterar, o cheiro do óleo queimado, a paisagem ondulante nos dias de calor, o som dos meus passos nas travessas atravessadas na linha que me permitiam chegar à linha do lado de lá, as mesmas que se vêm quando se sai de lá para cá.
Perdido por entre as memórias de viagens que nunca mais retomarei, vejo passar um vulto vermelho. Um bombeiro segura uma botija de oxigénio, outro, mais novo, segue-o segurando um desfibrilador portátil, de passo apressado.
Um homem, velho, sentado no banco de comboio olha assustado para o aparato e ruboriza-se ao constatar que é o centro das atenções dos transeuntes que aguardam a vinda gloriosa do comboio.
Uma mulher acaricia-lhe a face, desaperta-lhe outro botão da camisa de padrão riscado e afasta-lhe os colarinhos da caminha e da camisola azul do pescoço transpirado.
Ajoelhado em frente a ele, o bombeiro mais velho olha-o, pergunta o que aconteceu. A senhora responde-lhe, um pouco embargada, que parecia ter-se desequilibrado ao final das escadas rolantes e se não era ela a ampara-lo teria ele caído para trás.
Olho para o lado, cabisbaixo o calor envergonha-se de se fazer tão forte e sai da gare, levando-se lívido para o meio da tarde.
Eu, talvez por ter sido arrastado das minhas viagens entre o hoje, ontem e amanhã, ensonado e descoincidido de mim mesmo, vejo uma translúcida figura masculina, uma espécie de pessoa impessoal, cujo corpo parecia luzir uma luminosidade que não fere e que se esbate no sem contorno que o caracteriza e desvanece-se em transparência. Coloca a mão quase transparente sobre o ombro da mulher que amparou o idoso e o olhava, agora, num misto de apreensão carinhosa e rememoração saudosa de alguém partido.
O bombeiro diz-lhe que pode ir agora, o comboio estará a chegar tarda nada, mas para ela, senhora, parecia tardar tudo, responde-lhe a esta espécie de anjo sem asas, que não, não tinha pressa, que faria o mesmo como se se tratasse do seu querido “paizinho”, senhora dixit.
O bombeiro sorri, levanta o joelho que tinha no chão, pisca o olho ao bombeiro mais novo e ergue-se. Coloca a mão no ombro do idoso, “posso levantar-lhe a camisola para medir a tensão”? O senhor responde que sim, “mas eu tenho comboio agora”, “não, o senhor não pode sair daqui enquanto não estiver melhor, está bem?”, “mas o comboio”, “tem alguém a quem possamos avisar que chega mais tarde? A sua esposa?”, “ela já morreu e eu tenho que apanhar o comboio”, “não se preocupe” retorquiu a senhora “eu levo-o a casa”, “mas eu moro na Régua”, “então temos um longo e bonito passeio para fazer” e sorriu, ao mesmo tempo que o vulto lhe passa as mãos transparentes pelos fios de cabelo que caíram sobre a face.
Vejo agora outros, mais ou menos translúcidos, menos ou mais luminescentes, uma pequena multidão parece rodear esta imagem de tarde sufocante. No perímetro estão pelo menos dois vultos bem maiores do que eu, uma espécie de barreira luminosa que forma um halo e me faz lembrar a luz que via passar-me pelos contornos dos dedos quando colocava a mão em frente ao sol.
Com carinho e cuidado, medem-lhe a tensão, auscultam-no, perguntam com sensibilidade se lhe estava a doer “aqui” e “aqui” e “agora aqui?”. O bombeiro mais novo acata a ordem do mais velho e retorna à ambulância, suponho, com o desfibrilador enquanto o outro desenha um padrão no telemóvel e entra em contacto com alguém.
O comboio surge ao fundo, na curva, ganhando dimensão como um velho e grande dragão que se anuncia pela cabeça e depois abre as asas entrando de rompante, silvando, na estação. Olho mais uma vez com o intuito de guardar bem cá no fundo da retina esta imagem, as pessoas levantaram-se com a chegada do comboio, faço por ser o último a entrar na carruagem amarela e já sentado, comigo a meu lado, olho para trás pelo vidro e por entre os reflexos do interior do comboio despeço-me um pouco emocionado pelo turbilhão de sentimentos que me chegam como uma maré aos olhos.
Enquanto o comboio arranca vou virando a cabeça para poder ver apenas um pouco mais.
Ficam lá o idoso, desorientado, a senhora, que parece ter ganho uma inesperada orientação e o seu vulto luzidio com a transparente mão no seu ombro, o bombeiro mais velho com uma mão no ombro do idoso acarinhando-o e a outra no telemóvel, ostentando uma espécie de luminescência que lhe brota nas costas abaixo do pescoço e, aos meus olhos destreinados, se assemelham a umas asas, como se pudesse ser!, feitas do mesmo material dos outros vultos.
O comboio segue lesto na viagem quente, ganha velocidade, eu ganho apenas idade e vou, sentado, de frente para a lateral da carruagem, vendo o meu reflexo no vidro, as mesmas letras “quebrar em caso de emergência”.
Baixo um pouco a cabeça e penso na inevitabilidade da vida, das vidas, que se iniciam algures e terminam nenhures, no aglomerado de luminescências que se vestem de companhia, nos vultos que se fazem vestes e se deixam atravessar por tantas e tantas vidas sem vida dentro, na miríade de habitantes de um universo que por infinito me parece tão pequeno.
O hipnótico som das rodas nos carris quentes e dilatados começa a embalar-me.
Penso no idoso que ficou sentado no frio banco metálico da plataforma, na sua fragilidade, no seu olhar assustado, de vultos rodeado, no chegar a casa e encontrar alguém, um filho preocupado, um cão de saudade espumado, uma esposa, se ainda a tivesse, de avental bordado e o susto que a susteria ao ver chegar o companheiro em companhia desconhecida... Não acabo o pensamento, dou um daqueles passos falheiros que damos ao adormecer e abro os olhos estremecendo de repente.
Vejo no vidro o reflexo de alguém que não se senta a meu lado, pousa-me sobre a perna um avental, de arco-íris bordado, “a surpresa será dele, ao ver que quando pensou que eu partia eu estava ali ao lado dele e sorria”.
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