De vida atravessado

in Bird Magazine.

Ao ver os miúdos que vão agora para a escola, consigo reviver os episódios da minha infância, a compra dos cadernos e da sebenta, as primeiras letras, um livro da escola com um cisne a ensinar o número dois, o choro de algumas crianças no primeiro dia, o tamanho imenso do recreio… Recordo a compra de um porta-lápis, na altura com um desenho de um herói de banda-desenhada que não recordo, a ultra tecnologia do fecho metálico com íman e as canetas, lápis, borracha, afia, tudo devidamente acondicionado.
O caderno novo, onde escrevia, a várias cores, o sumário, a data, a matéria, os deveres, o contorcer as letras entre as linhas e a ansiedade de procurar num cérebro vazio de experiências prévias a palavra correcta para não ter erros no ditado.
O correr no recreio, a gritar e com os olhos a piscar, imitando um carro da polícia. Sentar-me na esquina do recreio, que antes dava apenas para um caminho de terra, pouco largo, que dava para os campos e montes por onde passava ao ir para casa… Os mesmos campos que tantas vezes me viram correr, por entre trigo, centeio e milho, o roçar das ervas frias e húmidas nas pernas, o sabor gélido das presas, afastar os agriões e as rãs para beber um pouco de água.
Vejo-me saltar os muros, subir a “austrálias”, esperar pelo assobio de um amigo para ir brincar, jogar futebol, aos cowboys, entrar em minas escuras, quase cair a poços, roubar umas peras e umas maçãs, ficar com diarreia de tantas uvas comer, entrar nas medas de palha quando chovia, saltar de poça em poça com as galochas “olhos de sapo”, ter medo dos mais velhos, fugir, levar, atirar grampos com fisgas… Os dias de criança não tinham fim… Eram vividos como escrevo, de um só fôlego, com a certeza de no final do dia ter o cheiro de uma sopa quente, um arroz de tomate ou feijão vermelho com sardinhas, o sacrifício de lavar os dentes, o esperar pelo meu pai ao fundo do caminho e ver que era um gigante ou ouvir o bater compassado do escape da Java preta pela estrada, correr para a rua com folhas e folhas e anotar matrículas dos poucos carros que passavam, com a esperança de ganhar alguma coisa que nunca soube o que seria. Jogar aos números de matrículas, fazer cabanas com giestas, austrálias e, as mais sofisticadas, com palha roubada de medas diferentes para não dar nas vistas. Forrar o chão com folhas e ter os joelhos sempre verdes de tanto no chão do monte andar. Atirar pedras para o fundo do poço e tentar adivinhar a altura, jogar ao canhão, ao cagarila, ao espeto, ao pião, aos “Heróis da Esquadrilha”, andar de bicicleta até partir quase todos os ossos dos braços ou das pernas, além das cabeças rachadas e saradas com folhas de videira molhadas. Ir nadar ao rio, explorar todos os recônditos do caminho, afagar os cavalos da quinta e dar-lhes, a medo, uma maçã, tomar banho nu no rio, saltar de pedra em pedra molhada e com musgo da represa, atirar folhas ao rio e ver quais as que chegavam em primeiro lugar, ficar com os olhos vermelhos e a pele encorrilhada das horas passadas na água. Atalhar caminhos por caminhos desconhecidos, fugir de cães e de velhos mal encarados, ouvir insultos por apenas tirar um cacho de uvas ainda mal tingidas de vermelho, levar picadas de abelhas, fazer de conta que ouvia a professora enquanto a mente vagueava nos mundos das naves que desenhava, pintar a cara com o marcador cor-de-laranja para ter sardas, ser amigo de todos, andar à luta com putos de outros lugares, cair no chão em terra e pedra e ficar com os joelhos abertos, que não sangravam pela crosta de terra que se lhes colava, não chorar para não magoar o orgulho enquanto a funcionária nos limpa a terra e pedras dos joelhos e os colegas se riem às escondidas e fazer de conta que a tintura de iodo é mercúrio… Olhar para o céu, ver nuvens e não pensar que um dia poderíamos olhar para o céu com a preocupação dos gases nocivos, respeitar tudo e todos, lutar e sanar tudo com a troca de uma folha de couve para parar o sangue que escorre do nariz, andar de joelhos empurrando carrinhos em caminhos de terra e imaginar mundos novos de possibilidades em que o denominador é, sempre, a amizade. O orgulho e prazer de ter um carrinho novo, um iogurte ao domingo, o colo dos pais nas noites de Inverno e trovoada em que a electricidade fugia durante dias. O barulho das tonas dos eucaliptos nos troncos, o cheiro a chuva na terra seca, a vizinha aos gritos “já há luz! Já há luz!”, os gatos a dormir aos pés, as cobras a sibilar nas silvas, os pessegueiros selvagens e a pedreira desactivada onde fazíamos as nossas guerras das estrelas, justiceiros, tom sawyers, conans, três mosqueteiros, jangadas que se afundavam em vinte centímetros de água, deitar de barriga para o ar no musgo frio e sonhar alto, que idade irei ter no ano 2000?
As chávenas de café negro, a boroa, a cebola e o sal enquanto as roupas secavam por cima da lareira, dividindo o espaço com os presuntos, o fontanário, as corridas de caricas, as gotas de cera ou cascas de laranja nas caricas, as pistas de terra, jogar à rodinha (confia, confia!), consertar todos os furos na bicicleta, inventar nomes para as árvores, conhecer cada milímetro do sonho, olhar nos olhos nos amigos e rir apenas porque nos apetecia, ver o corpo crescer, ver tudo crescer, sentar no muro e ver o tempo passar…
As histórias têm o seu próprio rumo, podemos sempre orientá-las, mas a força do seu leito acaba por prevalecer, sulcando caminhos que pensávamos já nem os ter.
Não sei que assomo de imaginação me leva a visitar locais do coração. Fico perplexo ao ver a quantidade de episódios e filmes que guardo, ainda mais com a miríade de possibilidades que as histórias assumem, com a vontade de passar a noite aqui, a dar vida às personagens, vê-las saltar de mim para o monitor, dançarem, percorrerem sozinhas todo o portátil, correndo de um lado para o outro, à procura das teclas, das letras e caracteres que necessitam para se perpetuarem ainda que por momentos. É como se gostassem de se ler, de olharem para elas e dizerem: “ah, então é assim que eu me escrevo”, como um retrato que tiramos a nós mesmos com o telemóvel e dizer “se me vissem agora, era assim que me veriam”.
Creio que é hora de me deitar, estou apaziguado, calmo, com o coração palpitante e uma vontade de abraçar o mundo, de estar apenas aqui, a sorrir, com a companhia do índice de algumas histórias que tirei de mim e que repousam no sofá, sorridentes, com as pernas a balançar (são pequeninas, não chegam ao chão), com as personagens que formam uma floresta de árvores, em que cada árvore é um amigo, em que por muito que estejam distantes, possuem metros, quilómetros de raízes profundas que se tocam e que partilham o mesmo solo… O amor.
Vou levantar-me lentamente, desligar o portátil, ouvir a música até final e ir devagarinho até à cama, para não a acordar, dar-lhe um beijinho no ombro, olhar para a mesa-de-cabeceira e conferir se tenho o caderno e a caneta, não vá o sonho, como muitas vezes, levar-me a outros mundos e outras pessoas, algumas que já não estão entre nós e eu, por não ter onde anotar, esquecer um recado, um outro sonho, uma mensagem ou uma paisagem. Depois deito a cabeça devagar na almofada e fecho os olhos, devagarinho, para não acordar as lembranças que estão na retina e enquanto todas as luzes se acendem e apagam na minha noite eu digo baixinho “sei que muitas das vezes não digo, mas obrigado por este dia”.
Deve ser questão de minutos ou horas, até me levantar enquanto outro eu dorme, vir à sala, pegar com carinho nas histórias que deixei no sofá, cujas pernas já não balançam, que me olham com sono e eu digo: “vamos acordar, temos que vos levar a quem se esqueceu de vocês”.

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