Renovar, de novo


Crónica de domingo, na Bird.

Encosto a cabeça à porta, baixo um pouco o vidro, entra-me o fresco da noite e ainda ecos de claves que luziram de lua e não de sol.
De sol em sol a falta do volante não se sente, embalo-me pelas irregularidades do piso e deixo-me ser transportado pelo pequeno emaranhado de ruas que viram, em tempos, desacordos românicos sobre qual a letra a visitar quando o amor se quer fazer entre um dó e um ré.
Ré, inocente, entre o vento e a noite, a luz que passa por mim como riscos leves de pinceladas de um sem abrigo no quase breu dos candeeiros que iluminam, mas não aquecem ao longe, do lado de lá da retina, as pequenas estrelas que me fazem chegar a saudade de milhões de anos luz onde vivi como sendo apenas éter.
É ter e não ser que me prevalece no untado corpo quando chovem risos de conversas que nunca soube ter. Hoje e ontem. Amanhã e no futuro, distante, onde me sentarei na pedra fria, a contar nuvens de mosquitos que conspiram sobre a pluviosidade que lá vem.
Lavem as ruas, as calçadas, desnudem as pessoas e as casas, hoje quer-se um momento de sonolência, passe por nós sua excelência, nua e crua, enquanto eu dormito e emudecido o céu fito, tenho saudades de ver o brilhar com olhos de criança dormente.
A dor mente, tenta trazer para si o barulho de uma semana onde encontro a vida e a morte, se me é permitida tal sorte, quando umas mãos frágeis e pálidas, onde corre sangue que quer ser respirar me seguram o braço, os lábios sedosos de um idoso que envelhece para ser criança de novo me beijam a tremer a face e um sussurro que me bate alto na cavidade auricular, tanto quanto na alma, soltando um “gostava tanto de morrer agora”, mas a vida tem outros propósitos, um pouco como as mãos que me vêm debruçar sobre o vidro semi embaciado, ortografiar enregelado o pensamento enquanto me esforço por repescar as letras que afloraram à tona do lago onde me reflicto. Baixaram a tampa do caixão.
Cai chão e terra, o céu aguarda-se azul por enquanto, os corpos contorcem-se na ignorância de não se saberem eternos, em húmus e cinza, a claridade ausente que apenas o louco sente quando a consciência mundana o deixa divagar rapidamente entre as várias camadas que nos separam do reflexo e refluxo da vida.
Vi da janela, pela janela, corrijo, a tua cara já rechonchuda, pele lisa e braços firmes onde pende a tua pulseira dourada. As paredes parecem ceder à transparência do que o olhar desatento fita, enquanto te beijam a testa fria, dás um ar de riso e colocas a mão invisível no rosto e limpas umas lágrimas de comoção que nunca chegaram a luzir. Os abraços e o choro, a tinta da caneta por onde escorreito corro, tudo se converte no chamado da atenção para a inevitabilidade da vida, morto estamos todos quando nos permitimos ser vividos pelos dias, sem que nunca os enfrentemos sem medos, agarrados a nós os segredos e a eles o dia a seguir ao outro. Apertado ao pulso o barulho ritmado do relógio sobrepõe-se ao bater do coração.
Cura, são segue o horário e a manhã fria e ventosa, a perniciosidade do mal vigorará agora que todos se sabem mortais, sem a protecção dos capitéis, de que nos valerão nas mãos gastas os luxuriantes anéis?
De novo, mas ainda gasto, dou-me ao pensamento e continuo no remexer de uma semana, a procurar sobre e debaixo de papéis, a maior parte não são meus, episódios que me possam trazer a serenidade de acalmar a pacatez do que me sobra. Não possuo qualquer legitimidade na defesa ou acusação de nada além de mim. Falta-me, faltas-me, a opinião sobre outras veleidades que não o que me dita o coração. Por mim continuo na sombra, onde sempre me soube proporcionar a queda das folhas, o mergulhar das mesmas no mar de ar e partículas que me separa da próxima respiração, ver sorrir um rosto que se volta e, por momentos, pedir em segredo a que divindade possa interessar que me tenha o tempo com placidez, afinal, o reflexo de mim no espelho sorri-me velho e diz-me, piscando conspiratoriamente o olho, sou eu quem me fez.
Sabes, leitor, penso em ti, enquanto continuo com a cabeça encostada ao vidro e o ruído abafado do motor se harmoniza na minha imaginação num contínuo ronronar de um universo a dormir. O quanto te tenho para dizer, esta ânsia de tudo espairecer e deixar que se soltem as palavras, ainda que não as gostes, porque, sei-as, por vezes, amargas. Olho para as letras e palavras, as do papel e as que passam por mim na mesma rapidez das luzes do crepúsculo contínuo que é a duração da noite, o que me separa de ti é a respiração que gostava que sentisses, sobres os teus ombros, e visses que além desta cacofonia de escombros estão as estrelas. E eu, garoto, espero que sonhes com elas.

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