Haver
Crónica de domingo na Bird.
Volto à folha de papel, de onde nunca deveria ter saído, confesso, para me ver sentir novamente o áspero e sensual deslizar do papel numa folha em branco.
Não há barulho, apenas o silêncio se faz ouvir, entrecortado com a minha respiração e a rouquidão do lápis triangular, negro, como a noite que se levanta para me fazer companhia.
Ao fim de poucas linhas o pigarrear do grafite traz a comparação com o inequívoco do arrastar dos meus passos numa estrada com dois sentidos, mas sem sentido algum.
O desafio da escrita rasga-me o tecido com que cubro o local onde estou, tenho-o, o lençol, amarrado a uns galhos destes arbustos onde penduro a roupa a secar e os grossos troncos dos pinheiros onde vejo a palma das minhas mãos em cada golpe que a corda ali laçada vai escavando.
Há um certo pudor que me acompanha e que, também ele, se deixa anestesiar pelo bailado do lápis, a sombra que acompanha cada letra e o salto improvisado quando termino cada palavra escrita para a próxima palavra.
Começo a duvidar da minha senilidade, estarei a ficar são? Mas não, felizmente ainda me alcança a loucura (e a timidez muda) de seguir as vontades loucas (e quem sou eu para as ajuizar?) deste companheiro de jornada, meu lápis. Dirão que é impossível, o lápis gasta-se, usa-se, apara-se e morre um pouco a cada lasca de madeira, de grafite granulado, elevado a pó ou a cada apara arrancada à força pelo ferro afiado de um formão ou navalha, mas, retomando o caminho roufenho desta folha arrancada a uma árvore e agora de celulose para que morra em paz, tomada de vocabulário, um pouco como nós, coisas humanas, que sucumbimos nus e crus, sem frases rendilhadas no corpo onde nascerão as raízes das folhas que escreverão a história da própria história, nossa e vossa, humanos e árvores.
Pergunto-me, invariavelmente não encontro a resposta, porque teima o céu reflectir-se nas águas calmas do Douro, que vem espreitando a costa a galope de pequenas ondas. Quererá o leito ser mais que a margem?
Acaba-se-me o papel e na revolvida terra que me verá virar costas e caminhar com a mesma esperança de amanhã, sim, terá outro dia e no percorrer deste caminho sem peregrinação perguntarei ao próprio caminho, quem és tu, que me vagueias por mim sozinho?
Pode a vida sobrar num cabo ventoso enquanto o horizonte teima em se fazer mar?
Vou deitar-me na certeza destas palavras, desatentas, subirem fragas acima e esperarem lá, onde o Sol aquece basalto e granito, que eu me decida a ser também pedaço de vento e deixar, por breves momentos, de ser.
Um cão vagueia na estrada, desatento, arfando como quem sorri ao patear o asfalto, de costas para o trânsito. Negro como a noite, dia não fosse, diria que me sorriu, o bicho.
O Sol espreguiça-se de encontro a um muro, como que se lembrando que é quase Outono e as pedras do muro são quentes ao final da tarde. Sol, de sol em sol, até se aninhar rendido no olhar de quem se acriança.
Um sorriso de uma criança, que recorda com satisfação, de olhos fechados, o primeiro almoço na cantina da escola.
Um atirar para o restolho dos restos dos dias que vivo.
Quatro vidas se vivem, em quadras que jamais escreverei. Quatro, quatro mil, quatro milhões que fossem, que ao me atirar para esta vida, ficou de mim no lado de lá aquilo que jamais emergirá.
E a vida que se atiça aos dedos, saltando, tecla em tecla, letra em letra, sem que se dissipe o nevoeiro que trouxe ao cais dos meus olhos uma palavra.
Há.
E isso basta-me.
Volto à folha de papel, de onde nunca deveria ter saído, confesso, para me ver sentir novamente o áspero e sensual deslizar do papel numa folha em branco.
Não há barulho, apenas o silêncio se faz ouvir, entrecortado com a minha respiração e a rouquidão do lápis triangular, negro, como a noite que se levanta para me fazer companhia.
Ao fim de poucas linhas o pigarrear do grafite traz a comparação com o inequívoco do arrastar dos meus passos numa estrada com dois sentidos, mas sem sentido algum.
O desafio da escrita rasga-me o tecido com que cubro o local onde estou, tenho-o, o lençol, amarrado a uns galhos destes arbustos onde penduro a roupa a secar e os grossos troncos dos pinheiros onde vejo a palma das minhas mãos em cada golpe que a corda ali laçada vai escavando.
Há um certo pudor que me acompanha e que, também ele, se deixa anestesiar pelo bailado do lápis, a sombra que acompanha cada letra e o salto improvisado quando termino cada palavra escrita para a próxima palavra.
Começo a duvidar da minha senilidade, estarei a ficar são? Mas não, felizmente ainda me alcança a loucura (e a timidez muda) de seguir as vontades loucas (e quem sou eu para as ajuizar?) deste companheiro de jornada, meu lápis. Dirão que é impossível, o lápis gasta-se, usa-se, apara-se e morre um pouco a cada lasca de madeira, de grafite granulado, elevado a pó ou a cada apara arrancada à força pelo ferro afiado de um formão ou navalha, mas, retomando o caminho roufenho desta folha arrancada a uma árvore e agora de celulose para que morra em paz, tomada de vocabulário, um pouco como nós, coisas humanas, que sucumbimos nus e crus, sem frases rendilhadas no corpo onde nascerão as raízes das folhas que escreverão a história da própria história, nossa e vossa, humanos e árvores.
Pergunto-me, invariavelmente não encontro a resposta, porque teima o céu reflectir-se nas águas calmas do Douro, que vem espreitando a costa a galope de pequenas ondas. Quererá o leito ser mais que a margem?
Acaba-se-me o papel e na revolvida terra que me verá virar costas e caminhar com a mesma esperança de amanhã, sim, terá outro dia e no percorrer deste caminho sem peregrinação perguntarei ao próprio caminho, quem és tu, que me vagueias por mim sozinho?
Pode a vida sobrar num cabo ventoso enquanto o horizonte teima em se fazer mar?
Vou deitar-me na certeza destas palavras, desatentas, subirem fragas acima e esperarem lá, onde o Sol aquece basalto e granito, que eu me decida a ser também pedaço de vento e deixar, por breves momentos, de ser.
Um cão vagueia na estrada, desatento, arfando como quem sorri ao patear o asfalto, de costas para o trânsito. Negro como a noite, dia não fosse, diria que me sorriu, o bicho.
O Sol espreguiça-se de encontro a um muro, como que se lembrando que é quase Outono e as pedras do muro são quentes ao final da tarde. Sol, de sol em sol, até se aninhar rendido no olhar de quem se acriança.
Um sorriso de uma criança, que recorda com satisfação, de olhos fechados, o primeiro almoço na cantina da escola.
Um atirar para o restolho dos restos dos dias que vivo.
Quatro vidas se vivem, em quadras que jamais escreverei. Quatro, quatro mil, quatro milhões que fossem, que ao me atirar para esta vida, ficou de mim no lado de lá aquilo que jamais emergirá.
E a vida que se atiça aos dedos, saltando, tecla em tecla, letra em letra, sem que se dissipe o nevoeiro que trouxe ao cais dos meus olhos uma palavra.
Há.
E isso basta-me.
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