Doi, do

Crónica de domingo na Bird

Existe uma tangência que espreita nestes dias redondos, semi quentes… Entre a frase anterior e o momento actual, mesmo em desacordo ortográfico, creio ter escrito, digitado, dezenas de frases e uns bons centos de palavras. Apaguei tudo, excepto a tangência, pela musicalidade e por ser a forma como tudo nos toca, tangencialmente, sem nunca transpor o limite que nos separa da miscência. Tento não escrever na crueza do que me seca as noites, perpetuar um pouco a areia molhada e as pegadas que apago para que ninguém, incauto, me siga. Hoje, tal como amanhã, quero-me incógnito. Hoje, tal como ontem, quero olhar o céu e ver um tufo de nuvens arrolhar com o vento, serpenteando na inocência de um Deus que se deleita com a mesma inocência com que uma criatura, selvagem, se deita. Haveria de ter dito isto antes, mas nunca o fiz, talvez porque saiba que estas, e as outras, ao contrário das pegadas de hoje, ficaram para serem li… Não, não lidas, ficaram para serem, olha, pegadas de locais onde nem sequer me atrevo a pensar, quanto mais caminhar. Caminhar é para quem se ajoelha no lodo lamacento, uma espécie de lodaçal de maré vaza sem água, um perpétuo repetir de repetições, remexendo o solo em busca de algo que cai, ainda vivo, creio, num saco de plástico, tal como as nossas vidas. As vidas serão como todos os sábados virados para dentro, um pouco sem histórias e personagens. É do calor, repito, que se me secam as fontes por onde costumo entrar sem frio para ver quem por de trás da água vem corrente, fogem, como os faróis fugiriam se os agrilhoassem a montes de dor. Surge um dia em que tudo cansa, até o respirar. Um dia em que todas as ruas parecem imensas rotundas que nos levam a passar vezes sem conta no mesmo local, mais depressa, mais devagar. Entramos por uma vereda, seguimos em frente, o semáforo está verde, não o colhas, terás oportunidade de petiscar quando o ar rarear e sentires entrar em ti, correcção, pelo teu corpo, o alimento do qual sobrevivem as estrelas, o infinito. Teremos que ter esta conversa, um dia, talvez no embalo de uns desconfortáveis bancos de um comboio que balança ao ritmo do metálico claquear das rodas nos carris, parecem ir contando quantos percorreram, mas eles, tal como eu, perderão a conta às contas que somaram para se multiplicarem em pensamentos que se dividem nas categorias a que chamamos dias e estes, dias, são sempre de menos, subtraídos, traídos e atraídos pelo toldo da feira, quente como o inferno, que se abana e faz pensar que o céu, esse, um dia se irá caiar. É do calor, birrepito-me, que se me urdem urzes e por entre elas as pegadas que nunca permiti calcar. A cacofonia de sons, de vozes, de pensamentos que cheiram a maldade, pessoas que se acometem ao pregão e de lá, do fundo, da dificuldade em viver da vida, arrematam tudo por um punhado de moedas, ou euros, e repetem algo, primeiro, para que ela própria a ouça e, depois, baixinho, para que o cansaço o saiba, “fodasse, eu queria era dormir”. Passo incólume pelo mercado, trago carradas de coisas para as quais não preciso embalagem, vai tudo colado ao corpo mesmo senhor, sou poupado e sim, um pouco parvo também, mas não o diga, que quererão saber-me e se eu nem de mim sei, quanto mais para contar a alguém? O ar fica rarefeito, a rede é péssima, o momento religioso chega e todos se convertem à idolatria de um estranho humano quase sem bateria. A armadilha foi lançada, o animal enjaulado ainda que não o saiba eum cego pede, encarecidamente, que o deixem continuar a não ver. Dê-mos-lhes as nossas vidas, aos poucos, primeiro a comida, depois o ar, siga-se a água, aos poucos, não vão eles acordar no desconforto, terão fome um dia e saberão que isso é bom porque todos terão e os, coitados, que ousem apalavrar o final de tarde em que se sentam e riem, descalços, quase nus, de braços dados ao entardecer diremos que são doidos. Vi um ali, sentado na praia húmida, pés enterrados na areia, a traçar uma tangente ao sol com o próprio olhar. Coitado, é doido.

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