Mãe?

Crónica de domingo, na Bird.

A nossa mãe é a melhor do mundo. Sei que sim, vejo pela minha. Jamais poderia imaginar-me descer de qualquer dimensão onde possa ter estado antes de regressar a este mundo, e vir ao mundo parido que não pela minha mãe. Ainda a tenho, a meu lado, quase lhe consigo ouvir ainda o bater das agulhas enquanto tricoteia mangas, botões e por fim casacos inteiros de bebé, ou escutar a chuva enquanto encosto a cabeça ao seu colo, ou as noites a arrefecer depois das quentes tardes de verão enquanto sentados nos degraus ainda quentes a olhar para o céu, para as estrelas, e conversar como gente grande, eu, sempre pequeno a teu lado, sobre tudo e sobre nada, de onde vimos, para onde vamos. Ainda hoje existem as mesmas estrelas e quando olho para elas, embora nem sempre estejas a meu lado, trago comigo a certeza cósmica de nunca te perder, de me saber teu nesta jornada, para voltarmos a ser um dia estrelas num aglomerado qualquer universal onde eu, filho, e tu, mãe, possamos voltar a ser a ausência da saudade.
A nossa mãe é a melhor do mundo. Ouço afirmar. Vejo putos lutarem entre si, envoltos em poeira levantada no recreio da escola, enquanto se rebolam e tentam agredir, de forma a não magoar, porque criança bate sem bater, porque um disse que a sua mãe era melhor que a do outro. Já graúdos, insulto como filho da puta é visto como uma ofensa ao olimpo, resulta invariavelmente em agressões de adulto, onde se bate para bater.
Toda a mãe é a melhor mãe do mundo. Ouço-as dançar nos olhos de quem as já não tem cá. Nas palavras “a minha mãezinha, deus a tenha”, no arrastado da voz que se faz embargada pela saudade.
Toda a mãe é a melhor mãe do mundo. Com certeza. Toda a mãe tem o condão de nos desprender do nosso ego e nos remeter para a imagem de alguém que com todas as forças arrancou da terra para dar de comer, galgou quilómetros para ir à reunião com a senhora professora, sofreu e gritou para que entre pernas nascesse um ser e no cansaço da paridez encontra forças no abraço ao bebé ainda sujo, toda a mãe é frase sem pontuação, lida e relida para se encontrar os mais variados sentidos à frase, vai-se fazendo de criança mulher crescendo enquanto no seu interior crescer quem nasça ao mês nove, ou antes, ou ainda antes de nascer para as mães de filhos cujas estrelas se fizeram de sóis a esmaecer, assim, sem respiração, mãe é caminho de casa à escola, de alforge e nós de sacola, com a comida no tacho e o tacho no jornal, “limpa a boca”, mãe sabe a sortido e à riqueza de à falta de melhor nos dar o que de mais rico o mundo tem, o abraço de mãe.
Mãe não tem ponto final, continua numa cornucópia, num desarranjo de domingo enquanto passa a roupa a ferro, na ida ao campo e no regresso de feno à cabeça, mãe é o tudo, mãe é o nada, mãe é passar-nos o cabelo a pente fino e a espremer pobres piolhos, também eles mães, com as pontas das unhas, mãe é enrolar o cabelo espreitar o espelho por entre mudas de fralda, é cansar-se de cansaço e ainda assim descansar entre lavas de louça, mudas de roupa, urdir dedos entre faldas sem uma espetadela sequer permitir ao alfinete.
Mãe, mãe é segurar um filho ao colo que arde de febre, na esperança do ardor se colar ao corpo e deixar o filho em paz, é seguir já adulto homem sem nunca deixar de o ver rapaz, é sentir mil vezes o ralhete em forma de palmada no seu próprio corpo, é permitir-se ao abandono de ser para cultivar sem terra um outro dia a nascer, mãe, mãe, mãe, é gastar a vida em anos e os anos de dias talhados sem quaisquer resguardos para olhar no final de duas décadas e ver pelas costas todas as noites, alguns açoites, seguir caminho sem soltar um ai quem de nada ao mundo vem e dele homem sai.
Mãe é o silêncio de um homem só.

Mãe,
chamo-te,
quem me teve e quem me tem,
ser do mundo e ter-te,
ser eu
e, sem ti, ser ninguém...

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