Nau
Crónica de domingo na Bird Magazine.
Um estrondo estreme as vidraças e a janela, embora a impassividade com que verte o resto do conteúdo da lata de atum, óleo de girassol incluso, sobre a fatia de pão velho transpareça o alheamento do som.
O vento empurrou a portada, descascada de verde, que bateu forte sobre a madeira, não causando estragos, porque estes já foram causados pelo tempo, que lhe trouxe um vidro partido.
Este jogo de quem assusta quem vem de longe, vento que o assusta ou tenta assustar e ele, sentado, como que falecido, causando a curiosidade do vento que chega de mansinho apenas para saltar e correr encosta acima deitando abaixo folhas já soltas preparadas para o Outono, quando ele abre de repente os olhos e o olha como que o tivesse visto.
O riso ouve-se invariavelmente a cada chuvada que cai, seja Inverno ou Verão, Outono ou Primavera, quando o homem se faz era e encosta à parede desbranqueada o corpo nu. Não há pudores, nem dores, onde já só habita o último homem só sem solidão, apenas carris por onde ninguém passará a carregar restos de corpos cansados de outrora, ou vagões carregados da súmula dos dias numa aurora.
As pedras lateralizam um fio de água, livre, cobertas de um líquen que não conheço, cores amareladas por um verde que me lembra o sono quando adormeço.
Ali está uma figura, dura, que sobe e desce a ladeira de um monte, agarrado a umas pedras pontiagudas onde, aos poucos, foi também ficando parte do parco vestuário, irá a um pequeno mercado, trocara dinheiro, enquanto o teve, por comida, parca, como ele, um ou outro saco de arroz, açúcar, por vezes massa, vegetais enquanto não os soube plantar e dois dedos de sorrisos quando encontrava alguém para conversar que não falava.
O passar do tempo, do lado de cá da vida, foi implacável com quem de cá vive pouco tempo e, por isso, envelhece. As paredes, as flores, as rochas que ninguém pariu, permaneceram vivas e semivivas, porque quem da terra vem jamais da terra vai, apenas nós, homens, que somos da terra o espectro, o infra e o ultra do que ambicionamos, mas isto ficará para lá destas linhas, agora, que me imiscuo no cenário e faço da narrativa um pouco de meu sudário.
Vi-o despejar, depois, sobre o pão e o atum, arroz de ontem aquecido hoje para colocar fechado na preta panela sobre o lume que atiçara. Não fumega, aqui até o fumo se evapora. Há-de aquecer panela e comida e ele, dali mesmo, da panela, sentado num largo tronco de madeira onde racha lenha e senta parte dele rachado, chega os pés para a lareira, aquece pés e as mãos, ao segurar na panela com um pano amarelado, enquanto cheira o que de pouco cozinhou.
Termina o almoço, levanta-se, o lume ficará a aquecer o ambiente ou a enegrecer o que falta do tecto, onde, empoleirado num aglomerado de troncos, com o dedo previamente molhado no óleo de outras latas de atum, desenhou pequenas estrelas, não fosse um dia a noite nascer sem elas e ele sentir saudades de casa.
Dá a volta a casa, sai pelas traseiras e pega em mais uma lata de atum, vazia, limpa-a com a mão e um pouco de terra e vai, sorrindo, sentar-se no chão cauterizado na frente do apeadeiro, levanta-se um pouco e arrasta para si um balde com terra escura.
Nada parece indicar que antes, outras eras, por ali passava gente. Agora, aquele chão parecia o local de batalha entre um homem e o cimento da plataforma. Aos poucos, ou aos muitos, confesso que não o conhecia antes desta folha de papel embora me tivesse parecido existir por ventos que vi soprarem noutros aluviões.
Depois, gentilmente, cuidadosamente, parte o resto do cimento já rachado e levanta a pequena flor que nasceu por ali, entre argamassas. Segurando-a pelo caule, olhando as frágeis e brancas raízes, apressa-se a colocar terra negra na lata de atum, faz um buraco com dois dedos de largura e pousa suavemente a flor. Irá cobrir as raízes, pressionar um pouco a terra em torno do caule como quem chega a roupa da cama ao pescoço de um filho e, pousando a lata sobre os joelhos, sacode as mãos, pega na lata segurando-a entre o polegar e o indicador e ergue-se, ficando ligeiramente encurvado enquanto espera que as pernas se habituem a nova posição.
Ri-se ao olhar em volta e ver que, na plataforma, já nenhuma flor aprisionada lhe pede para ver outros mundos.
Vai descer com cuidado a meia dúzia de passos íngremes até ao ribeiro onde, sobre uma improvisada plataforma de madeira, se improvisa um cais e onde estão já centenas de latas de atum, umas garridas ainda outras, haja fotólise, exibem apenas o enferrujado esqueleto, cada qual com sua flor, algumas já com descendências e outras ainda com raízes que espreitam borda fora da carcaça improvisada.
Uma a uma, com os pés descalços enterrados no lodo que faz de leito ao ribeiro, vai pousando as latas e desejando a cada flor uma boa viagem. Conforta-o o significado, cada flor sua paisagem, cada visita uma viagem, vê-as desaparecer além da última curva e imagina-as na jornada, ribeiro abaixo, rio acima, até um qualquer estuário as vir chegar e, de portas abertas, as levar lentamente ao mar.
Vazio, sobe quase de rastos a pequena encosta e separa-se do que não é seu, deixando para trás roupa e um ocre céu.
Cansado vai como quem tenha parido uma vida, deita dois cavacos à fogueira e enquanto estes lutam entre si pela chama maior, despe-se, passa água pelo corpo e seca-se com o mesmo pano amarelado com que segura panela e púcaro.
Vem nu à janela, abre o postigo.
O vento olha-o como quem lhe pergunta onde vai.
A troca de olhares convida-o a entrar e apressa-se a soprar sobre o braseiro para que não se apague. Fecha o postigo, fecha outro postigo, a porta é encostada e um pedaço de papel é enrolado e colocado na fresta debaixo da porta nova de madeira velha. Estende uma antiga passadeira feita de trapos, ainda nu, deita-se. Levanta a cabeça uma vez, olha para o lume, ainda lhe sente o calor chegar aos pés e enquanto o sentimento tépido lhe sobe pelos pés, pernas, joelhos, olha para o lado e vê o vento deitado a seu lado, quase adormecido, de sopro é agora um suspiro.
O calor chegará ao tronco já ele olha o céu semi-iluminado, onde brilham as embaçadas estrelas que desenhou.
Depois?
Depois acabou.
Um estrondo estreme as vidraças e a janela, embora a impassividade com que verte o resto do conteúdo da lata de atum, óleo de girassol incluso, sobre a fatia de pão velho transpareça o alheamento do som.
O vento empurrou a portada, descascada de verde, que bateu forte sobre a madeira, não causando estragos, porque estes já foram causados pelo tempo, que lhe trouxe um vidro partido.
Este jogo de quem assusta quem vem de longe, vento que o assusta ou tenta assustar e ele, sentado, como que falecido, causando a curiosidade do vento que chega de mansinho apenas para saltar e correr encosta acima deitando abaixo folhas já soltas preparadas para o Outono, quando ele abre de repente os olhos e o olha como que o tivesse visto.
O riso ouve-se invariavelmente a cada chuvada que cai, seja Inverno ou Verão, Outono ou Primavera, quando o homem se faz era e encosta à parede desbranqueada o corpo nu. Não há pudores, nem dores, onde já só habita o último homem só sem solidão, apenas carris por onde ninguém passará a carregar restos de corpos cansados de outrora, ou vagões carregados da súmula dos dias numa aurora.
As pedras lateralizam um fio de água, livre, cobertas de um líquen que não conheço, cores amareladas por um verde que me lembra o sono quando adormeço.
Ali está uma figura, dura, que sobe e desce a ladeira de um monte, agarrado a umas pedras pontiagudas onde, aos poucos, foi também ficando parte do parco vestuário, irá a um pequeno mercado, trocara dinheiro, enquanto o teve, por comida, parca, como ele, um ou outro saco de arroz, açúcar, por vezes massa, vegetais enquanto não os soube plantar e dois dedos de sorrisos quando encontrava alguém para conversar que não falava.
O passar do tempo, do lado de cá da vida, foi implacável com quem de cá vive pouco tempo e, por isso, envelhece. As paredes, as flores, as rochas que ninguém pariu, permaneceram vivas e semivivas, porque quem da terra vem jamais da terra vai, apenas nós, homens, que somos da terra o espectro, o infra e o ultra do que ambicionamos, mas isto ficará para lá destas linhas, agora, que me imiscuo no cenário e faço da narrativa um pouco de meu sudário.
Vi-o despejar, depois, sobre o pão e o atum, arroz de ontem aquecido hoje para colocar fechado na preta panela sobre o lume que atiçara. Não fumega, aqui até o fumo se evapora. Há-de aquecer panela e comida e ele, dali mesmo, da panela, sentado num largo tronco de madeira onde racha lenha e senta parte dele rachado, chega os pés para a lareira, aquece pés e as mãos, ao segurar na panela com um pano amarelado, enquanto cheira o que de pouco cozinhou.
Termina o almoço, levanta-se, o lume ficará a aquecer o ambiente ou a enegrecer o que falta do tecto, onde, empoleirado num aglomerado de troncos, com o dedo previamente molhado no óleo de outras latas de atum, desenhou pequenas estrelas, não fosse um dia a noite nascer sem elas e ele sentir saudades de casa.
Dá a volta a casa, sai pelas traseiras e pega em mais uma lata de atum, vazia, limpa-a com a mão e um pouco de terra e vai, sorrindo, sentar-se no chão cauterizado na frente do apeadeiro, levanta-se um pouco e arrasta para si um balde com terra escura.
Nada parece indicar que antes, outras eras, por ali passava gente. Agora, aquele chão parecia o local de batalha entre um homem e o cimento da plataforma. Aos poucos, ou aos muitos, confesso que não o conhecia antes desta folha de papel embora me tivesse parecido existir por ventos que vi soprarem noutros aluviões.
Depois, gentilmente, cuidadosamente, parte o resto do cimento já rachado e levanta a pequena flor que nasceu por ali, entre argamassas. Segurando-a pelo caule, olhando as frágeis e brancas raízes, apressa-se a colocar terra negra na lata de atum, faz um buraco com dois dedos de largura e pousa suavemente a flor. Irá cobrir as raízes, pressionar um pouco a terra em torno do caule como quem chega a roupa da cama ao pescoço de um filho e, pousando a lata sobre os joelhos, sacode as mãos, pega na lata segurando-a entre o polegar e o indicador e ergue-se, ficando ligeiramente encurvado enquanto espera que as pernas se habituem a nova posição.
Ri-se ao olhar em volta e ver que, na plataforma, já nenhuma flor aprisionada lhe pede para ver outros mundos.
Vai descer com cuidado a meia dúzia de passos íngremes até ao ribeiro onde, sobre uma improvisada plataforma de madeira, se improvisa um cais e onde estão já centenas de latas de atum, umas garridas ainda outras, haja fotólise, exibem apenas o enferrujado esqueleto, cada qual com sua flor, algumas já com descendências e outras ainda com raízes que espreitam borda fora da carcaça improvisada.
Uma a uma, com os pés descalços enterrados no lodo que faz de leito ao ribeiro, vai pousando as latas e desejando a cada flor uma boa viagem. Conforta-o o significado, cada flor sua paisagem, cada visita uma viagem, vê-as desaparecer além da última curva e imagina-as na jornada, ribeiro abaixo, rio acima, até um qualquer estuário as vir chegar e, de portas abertas, as levar lentamente ao mar.
Vazio, sobe quase de rastos a pequena encosta e separa-se do que não é seu, deixando para trás roupa e um ocre céu.
Cansado vai como quem tenha parido uma vida, deita dois cavacos à fogueira e enquanto estes lutam entre si pela chama maior, despe-se, passa água pelo corpo e seca-se com o mesmo pano amarelado com que segura panela e púcaro.
Vem nu à janela, abre o postigo.
O vento olha-o como quem lhe pergunta onde vai.
A troca de olhares convida-o a entrar e apressa-se a soprar sobre o braseiro para que não se apague. Fecha o postigo, fecha outro postigo, a porta é encostada e um pedaço de papel é enrolado e colocado na fresta debaixo da porta nova de madeira velha. Estende uma antiga passadeira feita de trapos, ainda nu, deita-se. Levanta a cabeça uma vez, olha para o lume, ainda lhe sente o calor chegar aos pés e enquanto o sentimento tépido lhe sobe pelos pés, pernas, joelhos, olha para o lado e vê o vento deitado a seu lado, quase adormecido, de sopro é agora um suspiro.
O calor chegará ao tronco já ele olha o céu semi-iluminado, onde brilham as embaçadas estrelas que desenhou.
Depois?
Depois acabou.
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